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quarta-feira, 24 de junho de 2015

Dúvidas para os pensadores do próximo milênio*



Richard Rorty

A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em que nada mudasse. Platão, fundador dessa área da cultura a que hoje chamamos "filosofia", supunha que a diferença entre o passado e o futuro seria mínima.

Foi só quando começaram a levar a história e o tempo a sério que os filósofos colocaram suas esperanças quanto ao futuro deste mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro mundo.

A tentativa de levar o tempo a sério começou com Hegel, que formulou detida e explicitamente suas dúvidas quanto à tentativa platônica de escapar ao tempo e mesmo quanto ao esforço de Kant em achar as condições a-históricas de possibilidade de fenômenos temporais.

É claro que o idealismo de Hegel entrava em conflito com o naturalismo de Darwin, mas mesmo assim Hegel e Darwin reforçavam um ao outro. Sua influência conjunta distanciou a filosofia da questão "O que somos?" e levou-a para "O que poderíamos vir a ser?".

Enquanto Platão ou Kant esperavam observar a sociedade e a cultura em que haviam vivido de um ponto de vista exterior, do ponto de vista da verdade imutável, os filósofos dos últimos dois séculos gradualmente abandonaram tais esperanças. Na medida em que levamos o tempo a sério, nós, filósofos, temos que abandonar a prioridade da contemplação sobre a ação.

Temos que concordar com Marx: nossa tarefa é tornar o futuro diferente do passado, e não continuar afirmando que sabemos o que o passado e o futuro têm em comum. Temos que deixar de lado o papel que os filósofos vinham compartilhando com sacerdotes e sábios, em nome de um papel social análogo ao do engenheiro e do advogado. Enquanto sacerdotes e sábios podem decidir sobre suas agendas de trabalho, os filósofos contemporâneos, como seus novos pares, devem procurar saber de que precisam seus clientes.

Uma vez que Platão inventou a filosofia exatamente a fim de escapar aos desejos transitórios e transcender a política, diz-se que Hegel e Darwin teriam "desistido da filosofia" ou "dado fim" a ela. Mas a filosofia simplesmente não pode acabar enquanto houver mudança social e cultural.

Tais mudanças inevitavelmente tornam obsoletas antigas descrições de nós mesmos e de nossa situação, criando assim a necessidade de uma nova linguagem, capaz de formular novas descrições.

Só uma sociedade sem política -isto é, uma sociedade regida por tiranos- poderia prescindir de filósofos. Em tais sociedades sem política, os filósofos não poderiam ser mais que sacerdotes a serviço da religião do Estado. Em sociedades livres, sempre haverá demanda pelos serviços dos filósofos, pois sociedades assim não cessam nunca de mudar, ou seja, de tornar obsoletos antigos vocabulários.

Pensadores como Marx, Weber, Ortega e Dewey tomaram nota das mudanças nas estruturas de poder que a Revolução Industrial ocasionara e advertiram-nos quanto à obsolescência e à insuficiência de nossos vocabulários tradicionais.

Dewey -filósofo que, como Marx, admirava Hegel e Darwin- sugeriu que víssemos a filosofia como fruto de "um conflito entre instituições de tendências incompatíveis": "Aquilo que parece pretensiosamente irreal quando é formulado metafisicamente torna-se intensamente significante quando conectado ao conflito entre crenças e ideais sociais".

Qual é então a agenda de trabalho a que os filósofos e os intelectuais de maneira geral devem atender neste final de século? Quais velhas crenças e tradições estão ameaçadas pelos novos desenvolvimentos culturais e sociais? De que precisam os clientes dos filósofos?

Tal como entendo a situação, o começo do novo século proporá o seguinte problema: os valores do Iluminismo -os valores que se encarnaram com maior ou menor sucesso nas instituições das democracias industriais- poderão sobreviver à derrocada da nação-Estado como unidade socioeconômica, derrocada esta que é uma consequência inevitável da globalização da economia?

Nos dois séculos posteriores à Revolução Francesa, as democracias industrializadas fizeram progressos consideráveis rumo à liberdade e à igualdade com que sonhavam os pensadores iluministas. Mas esse progresso foi obtido isoladamente em cada país, atacando problemas socioeconômicos com políticas localizadas. Não obstante, social-democratas e marxistas sempre pensaram que a nação-Estado deveria e acabaria por se extinguir.

Todos já imaginamos alguma vez uma comunidade cooperativa mundial -o "Parlamento do Homem, a Federação Mundial!" de Tennyson. Mas agora, quando a tecnologia finalmente tornou factível a globalização integral, nenhum de nós é capaz de imaginar como uma tal federação poderia existir, como um governo mundial poderia de algum modo ser democrático.

O problema está em que as atuais desigualdades nos padrões de vida não são compatíveis com uma organização política genuinamente global e internacionalizada, que oferecesse a cidadãos da Zâmbia, da Argentina, da Birmânia ou do Canadá as mesmas oportunidades.

Uma tal política certamente seria apoiada pela maioria da população mundial -os eleitores do Parlamento do Homem. Entretanto, as diferenças hoje vigentes são tidas por naturais pela classe média -a classe cuja existência e prosperidade são essenciais à viabilidade do governo democrático- de todas as democracias industriais.

Poucos membros da classe média argentina seriam bons cidadãos -obedientes e dispostos a apertar os cintos- de uma Federação Mundial dedicada a equalizar os padrões de vida na Argentina, Zâmbia e Paquistão. Poucos membros da classe média canadense nem sequer dariam ouvidos a uma proposta de nivelar as oportunidades socioeconômicas no Canadá, em Portugal, no Usbequistão e na Birmânia.

Mas também já não podemos esperar que as nações mais pobres adiem alguns séculos suas exigências de maior igualdade. Elas podem não querer esperar -e talvez não devam esperar- pela igualdade global por via de uma gradual ascensão a altos padrões de vida, num processo em que não haveria nivelamento ou perda de vantagens por parte dos países ricos.

A diferença entre os 50 países mais pobres e os 12 mais ricos é hoje tão grande quanto a diferença entre os muito pobres e a classe média bem de vida na Espanha ou na Inglaterra dos primórdios da Revolução Industrial.

O grito iluminista por justiça contribuiu para o surgimento, ao longo dos últimos 200 anos, de uma dúzia de países em que não se encontram tais contrastes terríveis entre miséria e afluência.

Mas são esses mesmos países que hoje não têm o menor interesse em rebaixar seus níveis de vida em nome de uma globalização da democracia.

Há boas razões para pensar que a globalização do mercado de trabalho será seguida não pela globalização da democracia, mas sim por uma quase insuportável pressão sobre as instituições democráticas dos países mais ricos.

Quando a justiça entra em conflito com a lealdade, esta última geralmente leva a melhor. Muitos de nós alimentamos e protegemos nossas famílias antes de podermos pensar sobre as necessidades de nossos vizinhos. Muitos de nós estamos muito mais interessados no bem-estar de nossos compatriotas do que na situação das pessoas do outro lado do mundo.

Mas os responsáveis pelas decisões econômicas que estão globalizando o mundo -e dizendo aos trabalhadores dos países industrializados que apertem os cintos a fim de competir com os trabalhadores de Cingapura e de Taiwan- orgulham-se de estarem acima das lealdades nacionais; declaram-se interessados na justiça em escala global. Mas esse discurso soa como uma desculpa pela traição a seus compatriotas, os trabalhadores cujos empregos estão sendo exportados para o Sudeste Asiático.

Não sei como se resolverá esta nova forma de conflito entre fracos e poderosos, isto é, o conflito entre os responsáveis pelas decisões econômicas e aqueles à sua mercê. Mas é óbvio que este conflito cria uma nova e incomensuravelmente maior fonte de tensão entre nossas lealdades particularistas e nosso senso de justiça universalista.

Gostaria que os intelectuais -e em especial os filósofos- pudessem ser de alguma utilidade no tratamento deste conflito entre valores tradicionais. Mas não estou certo de que os filósofos do século 20 tenham muito com que nos ajudar.

O movimento filosófico mais original deste século deriva de Nietzsche, e passa por Heidegger, Foucault e Derrida. Mas este movimento é de pouca valia para pensar problemas sociais. Mesmo Foucault, o que mais se aproxima de ser um pensador social, oferece apenas ressentimento e desconfiança frente a tudo o que lhe pareça uma usurpação de instituições sociais sobre a liberdade individual, mas nunca formula propostas de reforma dessas instituições.

Pensadores como Lyotard e Baudrillard tendem (como Heidegger antes deles) a dar as costas ao Iluminismo. Apesar das construções heróicas de Nietzsche e de seus seguidores, essa tradição tem pouco que se compare ao que Dewey esperava da filosofia: ela é incapaz de oferecer a espécie de redescrição e reconceitualização de nossa situação histórica que Marx e Weber ofereceram a nossos antepassados.

Ademais, a filosofia moral e política de pendor analítico e kantiano, dominante nos países anglófonos, tem tradicionalmente dado as costas Hegel, a Marx e à história. Ao contrário da tradição nietzschiana, ela voltou-se para dentro, para longe das necessidades sociais, dedicando sua atenção às necessidades do indivíduo cultivado, à sua tentativa de transformar sua própria vida numa obra de arte. Seus pronunciamentos têm sido a-históricos, relegando às ciências sociais empíricas as questões relativas à mudança social.

Não há porque esperar ajuda dessa tradição no que toca ao problema justiça versus lealdade. Pois essa filosofia continua a conceber a justiça como valor universal e transcendente, tratando a lealdade como questão empírica, indigna de qualquer papel na deliberação moral.

Mesmo assim, alguns filósofos contemporâneos lograram em grande medida libertar-se de Kant sem voltarem-se para Nietzsche. Penso em Jürgen Habermas na Alemanha, Charles Taylor no Canadá e Michael Walzer nos EUA. Esses pensadores tentaram situar-se na tradição de Hegel, Marx e Weber.

Nenhum deles é ou permanece marxista, mas todos concordam com Dewey quanto à necessidade constante do que Marx fez por nós -despertar-nos para a possível obsolescência dos vocabulários com que levamos a cabo as deliberações morais e políticas ou projetamos nossas visões utópicas.

Tanto quanto sei, os melhores livros recentes a respeito do conflito entre justiça e lealdade são da autoria de Michael Walzer: "Spheres of Justice", de dez anos atrás, e o novíssimo "Thick and Thin". Este último é de especial importância ao argumentar que o universalismo não é intrínseco à moral- ao contrário do que afirma os kantianos.

Na concepção de Walzer, os códigos morais são sempre locais, restritos e "densos". O universalismo "ralo" é, por assim dizer, o creme que -com sorte e em circunstâncias especialmente afortunadas- flutua sobre códigos morais locais e particularistas; ele não é a raiz de onde brotam nossas percepções morais. Walzer está na verdade repondo em circulação a grande objeção de Hegel à ética de Kant: a obrigação universal de agir dignamente frente a todos os homens não deixa lugar às fidelidades particulares que formam nossa identidade moral -nossa fidelidade à nossa cultura, ao nosso país, à nossa tradição histórica.

No próximo século, nossos filhos passarão por conflitos acerbos entre sua lealdade às pessoas e sua obrigação de continuar a trabalhar por uma utópica democracia global. É possível que muitos intelectuais não venham a contribuir para a solução do problema, mas filósofos como Walzer certamente serão mais úteis que muita gente.

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* RORTY, Richard. Mistérios do além. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 dez. 1995. Traduzido por Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/03/mais!/10.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.  




Mistérios do além*


Richard Rorty

Quando jovem, Derrida levou Marx muito a sério, leu-o intensamente e ainda hoje o recorda com afeição e gratidão -exatamente como faz com Shakespeare. Derrida é famoso não só por sua memória fabulosa como também por um sentido de lealdade caloroso e sentimental. Se uma pessoa ou livro alguma vez significaram alguma coisa para ele ou de alguma forma contribuíram para seu percurso individual, não será Derrida quem o esquecerá ou abandonará no meio do caminho.


Sua lealdade à memória de um amigo morto levou-o a escrever um longo e dilacerado ensaio em reação à denúncia contra o passado anti-semita de Paul de Man ("Como o Som de uma Concha Dentro de Outra Concha: a Guerra de Paul de Man"). Sua grande dívida para com os livros de Heidegger moveu-o a escrever repetidamente a seu respeito, com delicadeza e sensibilidade crescentes. Até agora não havia escrito nada sobre Marx, falha que agora mais que supre com este "Espectros de Marx".

O que mais interessa a Derrida é que Marx nos faz pensar na possibilidade da justiça. A "justiça", na obra de Derrida, tem um papel muito especial: ela é o nome para a grande esperança romântica, para o "Grande Indesconstrutível", a única coisa que não seria passível de ironia. A idéia de justiça, a idéia do que Derrida chama "a grande democracia por vir", está sempre a rondar a Europa. E provavelmente é isto o que a Europa tem de melhor, que torna o eurocentrismo ainda atrativo. Se, à maneira de Derrida, tomarmos Marx como o exemplar mais notável do desejo europeu por justiça, é bastante plausível dizer que "será sempre um erro não ler e reler Marx (...) será cada vez mais um erro, uma falta de responsabilidade política e filosófica (...) não há futuro sem Marx, sem a memória e o legado de Marx, em todo caso de um certo Marx, de seu espírito, ou ao menos de um de seus espíritos".


A função de expressões como "um certo Marx" ou "ao menos um de seus espíritos" é a de permitir a Derrida deixar de lado tudo o que não lhe agrada em Marx -tal como nós mesmos esquecemos todos os pontos fracos de nossos antigos amantes, que poderiam empanar a glória de nossos antigos amores. Ao dizer que há muitos Marx, para então descartar a maioria deles, Derrida pode preservar "Marx" como quase-sinônimo de "justiça" e, por essa via, sair-se com a declaração de que "este gesto de fidelidade a um certo espírito do marxismo é uma responsabilidade que recai sobre todos".

Se a causa final de "Espectros de Marx" é a justiça, sua causa material é o uso entrelaçado de palavras como "espírito", "assombração", "fantasma", "espectro" etc. Bem no começo do livro, Derrida escreve: "Se agora me apresto a falar longamente sobre fantasmas, heranças, gerações, gerações de fantasmas, isto é, sobre certos outros que não estão nem presentes nem vivos, seja para nós, em nós ou fora de nós, faço-o em nome da Justiça. Da Justiça onde ela ainda não está, ainda não chegou, onde não está mais, em suma onde ela não está presente e onde nem ela nem a lei jamais serão redutíveis às leis ou aos direitos".

Em outras palavras, a justiça é aquilo que a metafísica da presença está sempre tentando (em vão) identificar a algum conjunto de instituições e princípios. Tal identificação é impossível, porque toda instituição ou princípio produzirá novas e inesperadas formas de injustiça. Toda utopia criará um movimento de protesto social. A justiça é um fantasma que não se aprisiona jamais.

Por mais que admire a intensidade da esperança de Derrida por justiça, não estou certo quanto às razões de sua escolha de Marx como exemplo notável dessa esperança. Não estou certo de que sua lealdade a Marx, sua insistência para que todos nós continuemos a lembrar Marx, seja mais que a recordação de um encontro juvenil significativo, mas acidental.

Não há dúvida de que a história do socialismo europeu, ao longo de mais ou menos 200 anos de história, é o maior exemplo de esperança ativa por justiça. Concordo com Kolakowski quando ele diz que "a crença apocalíptica na consumação da história, na inevitabilidade do socialismo, na sequência natural de 'formações sociais', na ditadura do proletariado, a exaltação da violência, a fé nos efeitos automáticos da nacionalização das indústrias, as fantasias sobre uma sociedade sem conflitos e sem dinheiro -tudo isso não tem nada a ver com a idéia de socialismo democrático. A proposta deste último é a de criar instituições capazes de gradualmente reduzir a subordinação da produção ao lucro, acabar com a miséria, diminuir a desigualdade, remover as barreiras sociais à educação e minimizar a ameaça burocrática ou totalitária às liberdades democráticas".

Suponhamos que, em vez de escrever "será sempre um erro não ler e reler Marx", Derrida tivesse escrito "será sempre um erro deixar de pensar na possibilidade de se construírem instituições capazes de promover as metas do socialismo democrático, assim como será um erro não ter sempre em mente a brutalidade, a desonestidade e a hipocrisia dos que se opõem a esses objetivos". Seria fácil concordar com ele. Ele obteria a mesma concordância se tivesse escrito "socialismo" em vez de "Marx", contanto que tivesse distinguido, como faz Kolakowski, entre socialismo como nacionalização da indústria e socialismo como construção de instituições voltadas para as metas que ele e Kolakowski compartilham. Este último concordaria facilmente com Derrida quanto à necessidade de impedir que o regozijo atual sobre o fim do socialismo no primeiro sentido distraísse-nos do esforço por um socialismo no segundo sentido. Mas, tal como eu próprio, Kolakowski talvez se espantasse com a crença de Derrida em que, "para analisar essas guerras e a lógica desses antagonismos (criados pelo protecionismo, pelo GATT, pela superprodução e a dívida externa etc.), a problemática marxista será ainda por muito tempo indispensável".

Derrida não se esforça muito por apoiar essa última afirmação. Ele alterna entre o Marx pensador da justiça ou da democracia por vir (uma função que John Dewey e Roberto Unger poderiam muito bem desempenhar) e o Marx formulador de uma problemática insubstituível. Mas Derrida não especifica o que há no senso de justiça de Marx para tornar suas formulações de problemas sócio-econômicos tão úteis, assim como não especifica jamais essa utilidade. É verdade que ele lista os dez maiores problemas que ameaçam tornar vãs todas as esperanças européias: desemprego crescente, a exclusão política dos cidadãos pobres, a implacável guerra econômica entre as nações, a globalização do mercado de trabalho, a dívida externa, a indústria de armamentos, a proliferação nuclear, as guerras étnicas, a máfia e os cartéis do tráfico de drogas, a impotência das leis internacionais. Mas sua discussão desses problemas não exibe qualquer traço caracteristicamente marxista.

A ingenuidade não é tão comum nos dias que correm, de modo que é difícil achar alguém que vá se intrigar com a seguinte desconstrução da distinção marxista entre valor de uso e valor de troca: "Marx quer saber quando, em qual momento preciso, em qual instante o fantasma surge no palco (...). Em contraste, estamos sugerindo que muito antes desse 'coup de théâtre', antes de entrar no palco sob a forma de mercadoria, o fantasma já se imiscuíra, ainda que por definição sem aparecer em pessoa, mas já tendo introduzido no valor de uso, na madeira dura e sólida da mesa rija o elemento de repetição (e logo de substituição, conversibilidade, iterabilidade, perda de singularidade, donde a possibilidade do capital) sem o qual não seria sequer possível determinar um uso".

Esse esvaziamento da madeira dura e sólida parecerá familiar aos leitores -pessoas que, como diz Derrida, "conhecem grego antigo e filosofia". Nós que lemos a "Metafísica de Aristóteles" já conhecemos essa "hyle" (o termo grego para "madeira", que Aristóteles usou para designar "matéria"). Percebemos a questão e a piada.

Mas quem precisa de pessoas sofisticadas e poliglotas nestes últimos tempos? Bem, nós certamente precisamos uns dos outros. Pessoas como eu precisam de pessoas como Derrida -gente capaz de ler os livros que eu li e torná-los novos e maravilhosos. Nós precisamos de heróis e exemplos como ele -pessoas que se recriam por meio da releitura e redescrição de tudo, de Parmênides ao cartão postal, e assim ajudam-nos a recriarmo-nos. Mas o socialismo democrático precisa dele ou de mim? Ou será que o tipo de coisa que Derrida faz neste seu livro é útil (usando aqui um termo que me agrada, mas não a Derrida) para fins não apenas privados, mas também públicos?

Essa questão repropõe uma anterior: é realmente um erro não ler e reler Marx? Ou será que é um erro apenas para aqueles que conhecem grego e filosofia? Será que Marx não é mais que um íncubo para as demais pessoas?

Essas são perguntas a que gostaria de responder, mas sou muito ignorante para fazê-lo. Minha queixa principal quanto a "Espectros de Marx" diz respeito à pouca ajuda que o livro me deu em responder a essas questões. Derrida pressupõe a importância de Marx e então torna as coisas fáceis para si mesmo ao se aferrar a "um certo Marx" sem jamais dizer quais outros Marx nós podemos deixar de lado (e por quê).

O tributo mais notável e inesperado que Derrida presta a Marx é o seguinte: "Uma tal desconstrução 'do logocentrismo, da metafísica da presença' teria sido impossível e impensável num ambiente pré-marxista. A meu ver, o desconstrucionismo jamais teve sentido ou interesse se não como uma radicalização do marxismo, quer dizer, como parte da tradição de um certo marxismo, num certo espírito do marxismo".

Reagi com ceticismo a essa passagem. Senti a tentação de dizer: "Oh, veja bem, Derrida, você diz isso de todos os teus avós".

É claro que há uma linha em Marx da qual o antilogocentrismo de Derrida é uma radicalização. Mas eu bem poderia achar linhas semelhantes em Hegel, em Freud, em Platão, em Heidegger ou em Rousseau. Eu bem poderia derivar o antilogocentrismo de qualquer uma dessas linhas, assim como perceberia que o antilogocentrismo não perde nada de sua relevância na ausência de uma ou outra delas (ainda que não de todas). Um comentador de Derrida que isolasse um desses pensadores como a fonte por excelência da tradição que Derrida "impurifica" e radicaliza poderia produzir uma interpretação perfeitamente plausível de sua obra -o mesmo valendo para um outro comentador que, a partir da passagem que citei logo acima, localizasse-o na tradição marxista.

O trecho sobre o desconstrucionismo como continuação do marxismo por outros meios é, suspeito, um eco deliberado à passagem célebre da "Crítica da Razão Dialética", de Sartre, sobre o existencialismo como enclave dentro do marxismo. Parece-me que os protestos de continuidade têm para Derrida a mesma função que a passagem correspondente tinha para Sartre: ambas são uma tentativa desesperada de provar que todo o conhecimento de grego e filosofia e toda a familiaridade com a "hyle" são de fato úteis a um objetivo público vital. Nós, pessoas sofisticadas, somos mesmo úteis ao socialismo democrático, estamos a seu serviço não só como cidadãos, mas por meio de nossas qualificações profissionais.

Há um sentido em que todos nós, antilogocentristas atualizados (derridianos, deweyanos, ungerianos), somos fiéis à "11ª Tese sobre Feuerbach". Não buscamos entender o mundo, ao menos não no sentido aristotélico ou hegeliano de "entendimento", e isso não porque o mundo nos pareça ininteligível, mas sim porque encaramos cada redescrição do mundo como uma ferramenta de mudança individual ou social, não como uma tentativa de capturar os traços intrínsecos do real. Mas agora nossa escolha deve se dar entre mudar o mundo ou mudar a nós mesmos. Se tomamos esta última via, como fizeram Kierkegaard, Nietzsche e Proust, pareceremos egoístas, inanes e decadentes. Envergonhamo-nos quando notamos o esforço excessivo devotado a esse projeto puramente pessoal. Se por acaso tivermos nascido na última geração de intelectuais franceses, provavelmente acabaremos por escrever passagens sobre enclaves no marxismo ou sobre um certo espírito em Marx. Se somos pragmatistas americanos, começaremos por dizer que é importante inculcar nos jovens um espírito antilogocentrista, com vista ao futuro das sociedades democráticas e à realização dos ideais de John Dewey.

Espero sinceramente que as passagens citadas não sejam mostra de uma mera auto-ilusão de Derrida. Elas deveriam ser lidas, no dizer dele próprio, "dans un certain rire et dans un certain pas de danse" (num certo riso e num certo passo de dança). Elas deveriam ser acompanhadas de frequentes memorandos de que o tipo de coisa que nós, filósofos, sabemos e o tipo de mudança nos modos de pensar que nós podemos produzir podem bem vir a ter alguma utilidade social, mas apenas a longo prazo e muito indiretamente. Não há ciência da história, nem qualquer grande descoberta (da parte de Marx ou de alguém mais) do contexto definitivo no qual localizar o desemprego, a máfia, os mercadores da morte, o mercado de trabalho globalizado e tudo o mais.

Contextos produzidos por teorias são ferramentas para a mudança. Teorias que produzem novos contextos devem ser avaliadas por sua eficiência em promover mudanças, não por sua adequação a um objeto (como quereriam os logocentristas). Toda e qualquer ferramenta é substituível tão logo se invente uma outra, menos desajeitada, mais manejável ou portátil. A simples complicação em se tratar de questões contemporâneas com uma problemática marxista é a razão mais convincente para duvidar da necessidade de ler e reler Marx.

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* RORTY, Richard. Mistérios do além. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 dez. 1995. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/06/mais!/17.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.  

Meio milhão de capacetes azuis*



Richard Rorty

Ao visitar Belgrado no ano passado, perguntei aos meus anfitriões, todos eles intelectuais antibelicistas, se os Estados Unidos poderiam fazer alguma coisa para melhorar a situação na Bósnia. Responderam-me que não havia nenhum grande problema geopolítico a ser resolvido, que se tratava de um bando de gangues bem armadas e lideradas por chefetes sanguinários. Cada uma dessas gangues age por si só, tem seus próprios fornecedores de armas baratas e ultramodernas. Formam alianças frágeis entre si, ditadas sempre por necessidades passageiras. Nenhuma visa a algo além de pilhagens e estupros para seus soldados e contas bancárias na Suíça para os chefes. Identidade étnica e ideologia têm pouco lugar, a não ser para fins de recrutamento.


A se acreditar nos meus anfitriões sérvios, não haveria grande necessidade de negociações diplomáticas ou sábias reflexões sobre a história dos Balcãs, mas sim um bom contingente de policiais bem armados: a situação na fronteira bósnia não seria tão diferente assim da que impera em algumas partes de Los Angeles ou Chicago. Muita gente decente na ex-Iugoslávia foi forçada por essas gangues a ferir seus vizinhos, tal como acontece àqueles que, em Chicago, já não esperam proteção da força policial. Esses cidadãos de Chicago pagam impostos para um governo que lhes oferece bem pouco em troca, em boa medida porque o dinheiro dos bairros ricos fora da cidade não contribui em nada para o orçamento municipal. Na Bósnia, as pessoas têm que pagar tributos aos chefetes militares, em boa parte porque o dinheiro das grandes democracias industriais não chega aos cofres das Nações Unidas.

Boa parte do dinheiro que as democracias industriais gastam consigo mesmas vem da produção e comércio de bombas de fragmentação, fósforo branco, pistolas automáticas, mísseis terra-ar e outros itens que tornam a vida mais fácil para os senhores da guerra no Burundi ou na Bósnia. E para que nós, a classe média americana, continuemos a ganhar o dinheiro necessário para o nosso conforto e segurança, é necessário que haja um vasto exército industrial de reserva disposto a aceitar um salário miserável por um trabalho pouco especializado. Gastamos um bom tempo a deplorar os hábitos violentos de povos que, exatamente tal como nós, não podem se apoiar no monopólio estatal da violência. Mas não deixamos de lucrar com as condições que tornam essa violência inevitável.

E entretanto não hesitamos muito em pagar pelos serviços de uma força policial destinada a conter as gangues de um país distante. Ainda não somos tão egoístas a ponto de ficarmos indiferentes ao genocídio em Ruanda e na Bósnia. Não paramos de dizer que deveríamos fazer alguma coisa. Ficamos apavorados com a idéia de compartilhar um pouco de nossa riqueza com as pessoas que nos servem o almoço e varrem o chão de nossos escritórios, mas não nos importamos de usar um pouco do gigantesco orçamento militar americano para salvar alguns lares e vidas estrangeiros.



E, entretanto, sempre que essa possibilidade é mencionada, Washington não faz outra coisa senão enumerar em detalhes as dificuldades das propostas de ação concreta. Nenhum presidente americano está disposto a pôr em risco sua reeleição dando ordens que podem custar vidas americanas -a não ser que essas mortes se dêem no curso de uma rápida e esmagadora vitória. Justamente uma vitória assim não é possível em uma Bandenkrieg, uma guerra contra bandos armados. E são essas as guerras que aguardam muitos países pobres (incluídos aí a Rússia e a China, onde parece haver armas nucleares para quem quiser apossar-se delas).

Há 50 anos, pensávamos que o mundo aprendera algumas lições com o fracasso da Liga das Nações na Etiópia, e que, portanto, as Nações Unidas seriam bem diferentes. Talvez ainda seja tempo. Tornada irrelevante pela Guerra Fria, a ONU tem agora uma nova chance. Suponha-se que, por um instante, deixássemos a idéia (por agora risível) da "liderança mundial americana" e, de modo mais geral, a idéia de que cada democracia industrial deve tomar uma atitude própria frente às novas Bandenkriege. Suponha-se que nossos políticos se reúnam e percebam que estão complicando desnecessariamente suas próprias vidas com a necessidade de esconder suas políticas inertes por detrás de uma retórica moralista. Talvez esses políticos percebessem que valeria a pena conceder à ONU algum poder real, ao menos para evitar repetidos embaraços.



Suponha-se, mais concretamente, que as democracias industriais pusessem metade de suas unidades de combate à disposição de um comando militar nomeado pela ONU. Isso significaria que metade dos marines, dos rangers, dos seals da Marinha e de toda a turminha de Tom Clancy (mais seus equivalentes nas forças armadas do Reino Unido, da França, da Espanha, da Alemanha, da Índia, do Brasil etc) estariam à disposição do Conselho de Segurança para suprimir Bandenkriege.

Essas unidades são formadas por aquele tipo de jovem disposto e até mesmo desejoso de arriscar sua vida em combates violentos e imprevisíveis. Sempre haverá jovens assim, e seria bom usar suas energias para propósitos dessa natureza. Tais pessoas são pouco compreensíveis para nós, intelectuais -mas o inverso também vale, e eles, tal como nós, têm sua utilidade. Em sua maioria, não são sádicos -ainda que alguns o sejam (outra vez, tal como entre nós, intelectuais). Se essas pessoas pudessem ter alguma certeza de que se baterão não para preservar o conforto dos ricos ou o preço baixo do petróleo, mas para salvar pessoas inocentes, possivelmente se alistariam nas unidades de combate de seus países com a intenção explícita de servirem sob as Nações Unidas.


Se algo assim viesse a existir, talvez tivéssemos, em uma ou duas décadas, uma força policial internacional experiente de, digamos, meio milhão de homens e mulheres. Essas pessoas seriam pagas e armadas por suas nações respectivas, mas seu "esprit de corps" seria ligado à sua atuação como capacetes azuis -como homens e mulheres devotados à proteção de inúmeras viúvas, órfãos e refugiados.

Os comandantes dessa força viriam a ter sobre as decisões do Conselho de Segurança a mesma influência que um chefe de polícia honesto e experiente tem sobre as decisões de uma prefeitura. Esses oficiais seriam capazes de reunir sobre uma determinada área os aviões mais modernos, equipados com defesas contra mísseis terra-ar e sistemas de mira de última geração. Poderiam convocar as frotas de todo o mundo para transportar suas forças para qualquer lugar.

A indústria de armamentos (um setor da indústria cujo poder se deduz da raridade com que aparece nos jornais ou nas TVs) teria os maiores lucros. Ela poderia vender seus produtos para os governos que mantêm capacetes azuis, ao passo que só venderiam armas ligeiramente obsoletas ou ligeiramente defeituosas aos senhores da guerra locais. Seria uma maneira de lucrar fazendo o bem.

Seria ótimo dar um fim a esses cínicos mercadores da morte, como seria ótimo fazer algo quanto à indústria de cocaína e heroína, ou quanto àquelas pessoas que, na China e na Índia, estão desviando bens públicos para contas privadas na Suíça. Mas ninguém sabe por onde atacar esses problemas, enquanto que as Bandenkriege e seus horrores parecem ser um problema solúvel.

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* RORTY, Richard. Meio milhão de capacetes azuis. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 jan. 1996. Tradução de Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/1/07/mais!/22.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A habilidade natural*


Jurandir Freire Costa**

A edição em português dos "Escritos Filosóficos" de Richard Rorty é uma boa notícia para o leitor brasileiro. Rorty é um dos mais brilhantes filósofos americanos da atualidade. No terreno da subjetividade, seu trabalho abre horizontes extremamente interessantes. Embora sem tratar diretamente do assunto, as críticas que fez à doutrinas da filosofia analítica sobre a mente podem estender-se a inúmeras teorias psicológicas e a muitas tópicos da teoria psicanalítica.

Em linhas gerais, Rorty renova o interesse pelo pragmatismo de James e Dewey, sublinhando a concepção darwinista do sujeito e da linguagem. A evolução, diz ele, produziu criaturas falantes que utilizam marcas e sons articulados para receber discriminadamente estímulos ambientais e responder discriminadamente a estes estímulos. O sujeito é um dos efeitos desta habilidade natural que chamamos de linguagem. As consequências deste pressuposto são inúmeras.

Em primeiro lugar, o conhecimento deixa de ser imaginado como uma atividade representacional e a linguagem como um existente à parte, entre o cérebro e o resto da natureza. Entre o pensador e o que ele pensa não precisamos mais interpor um terceiro termo - mente, razão, linguagem, consciência ou qualquer outra entidade do mesmo tipo lógico - para explicar por que podemos representar falsa ou verdadeiramente "o que são as coisas em si".

Em vez de uma teoria "representacional", Rorty, apoiando-se fundamentalmente em Sellars, Quine e Davidson, propõe uma "teoria causal" do conhecimento. Conhecer não é "representar" alguma coisa para algo, pessoa ou função cognitiva. Conhecer é lidar com informações ambientais que afetam os organismos. Lidar significa alterar o estado de equilíbrio anterior à afetação, tendo ou não por finalidade a "adaptação", que é apenas um produto secundário da mutação ocasional do patrimônio genético ou da reação experimental do organismo vivo à exigências do meio. O conhecimento, portanto, é "causado" por esta constante interação organismo/meio, e o sujeito, um dos efeitos linguageiros desta interação.

Em segundo lugar, abandonando o "representacionalismo", abandona-se a pretensão de descrever a intrinsicalidade dos objetos investigados. As coisas, estados de coisas ou eventos são sempre percebidos e interpretados por comparação com outras coisas, estados de coisas e eventos.

Em vez de procurar saber "o que é intrínseco ou extrínseco" a tal fenômeno, pergunta-se qual o pano de fundo de crenças ou qual a rede de relações que tornou o fenômeno estudado um fenômeno relevante para a cultura do investigador. Ou seja, como Wittgenstein, Rorty não pergunta "o que torna algo idêntico a si mesmo em todas as circunstâncias lógica ou empiricamente possíveis", mas "que práticas linguísticas fazem-nos aceitar a identidade semântica do que consideramos um mesmo termo ou uma mesma coisa". Ou, pelo contrário, o que faz com que venhamos a notar diferenças e não semelhanças entre os objetos percebidos ou analisados.

Não existe algo que seja "a identidade" em abstrato e que nos faça "descobrir" a intrinsicalidade invariável do que definimos como idêntico a si mesmo, independente de contexto. Todo conhecimento do que julgamos saliente e importante conhecer é contextual e relacional. O sentido dos termos está no uso que fazemos deles, em contextos socioculturais.

Em terceiro lugar, descolando o sentido de termos, frases ou teorias de referentes fixos, ao modo do representacionalismo, o sujeito pensante ou intérprete dos fatos está liberado de compromissos com ontologias realistas ou universalistas. Sua tarefa não é mais a de conhecer cumulativamente ou aos saltos epistemológicos ou paradigmáticos a "realidade última" das evidências, mas a de imaginar que "background" de crenças permitiu assinalar tais referentes a tais palavras e, em seguida, afirmar que certas descrições "correspondem, refletem ou se adequam verdadeiramente" a tais ou quais pedaços linguísticos ou não-linguísticos do mundo.

Nem fisicalismo reducionista nem behaviorismo, a melhor definição para a hipótese rortyana da natureza do conhecimento e do agente que conhece é o "naturalismo pragmático", como sugere Bjorn Ramberg. Extrapolada para o domínio da subjetividade, esta tese implica a afirmação de que o sujeito não só é passível como exige várias descrições, todas elas logicamente válidas. A escolha de uma ou outra depende dos propósitos práticos que, em última instância, diz Rorty, são sempre ética ou moralmente normativos.

Podemos oferecer descrições do sujeito no vocabulário do mental, como podemos descrevê-lo fisicalisticamente. Mas estamos sempre optando por uma imagem moral prévia, enraizada nos hábitos linguísticos ordinários que orientam os propósitos do inquérito. Descrever o sujeito como "pessoa moral livre e autônoma", ou como um organismo biológico passível de controle experimental e interpretável em termos de leis nomológicas, é questão de estratégia intencionalmente dirigida para a afirmação de certas premissas éticas. Transcrito no idioma da psicologia leiga, o impacto é enorme. Muitos constituintes da subjetividade que aprendemos como "naturais, universais e imutáveis", perdem o caráter a-histórico.

A partir da leitura neopragmática, sentimentos, sensações, imagens ou outras figurações do que chamamos "natureza humana" mostram a dependência de crenças contextual ou historicamente construídas. Amor, paixão, sexo, fragilidade, potência, egoísmo, bondade, honra, glória, ganância, e assim por diante, são todos termos cuja história ou genealogia pode ser redescrita ou retraçada, em virtude de aspirações, necessidades ou sonhos presentes.

As chamadas "intuições indubitáveis" sobre "o que somos" nascem da participação numa cultura, num jogo de linguagem ou forma de vida que nos impõe, pela variação imprevista de experimentos morais e pela seleção retentiva de alguns destes experimentos, um modo contingente de lidar ou estar no mundo responsável pelas crenças que nos modelam.

A filosofia de Rorty, na clave da reflexão moral e não necessariamente no conteúdo de suas opiniões políticas, apresenta-se como um agir filosófico próximo da preocupação com as asceses individuais ou com a estilização de modos de viver tematizadas por Pierre Hadot, Peter Brown, Michel Vocault e outros. Na aproximação com a psicanálise, o naturalismo pragmático, desfazendo fronteiras tradicionais entre natureza/cultura, sujeito/objeto, aparência/realidade etc., evoca os momentos mais fortes do pensamento de Freud, Ferenczi, Balint, Bowlby e mais especificamente Winnicott, como mostraram Adam Philips e Alexander Newman.

Por outro lado, a ênfase dada por Rorty à performatividade da linguagem na constituição do sujeito -em particular, à função da metáfora não-significativa como produtora a posteriori de sentido - e à idéia de causalidade não-linguística dos atos de fala e do imaginário subjetivo parece confirmar algumas das mais criativas invenções teóricas de Lacan.

Em resumo, como notou Bento Prado Jr., com elegância, economia e grande inteligência, o maior valor do Rorty é o de mostrar a reinvenção de uma tradição em estilo próprio. Sem criacionismos fáceis ou fórmulas encantatórias, ele mostra que é possível pensar em liberdade, comprometido com o que é humanamente útil. Rorty não é um modelo a imitar. É um exemplo de honestidade, decência, coerência e grandeza intelectuais que vale a pena conhecer e avaliar, sem fraude nem favor.

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* COSTA, Jurandir Freire. A habilidade natural. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 out. 1997. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs121008.htm>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Jurandir Freire Costa é psicanalista e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Redescrições da Psicanálise" (1994) e "O Risco de cada um e outros ensaios de psicanálise e cultura" (2007).

Questão de fidelidade*


Paulo Ghiraldelli Jr.**

Junto com Alberto Tosi Rodrigues sou um dos responsáveis pelo fato de o livro "Achieving our Country -Leftist Thought in Twentieth-Century America" (Harvard, 1998) ter sido publicado no Brasil com o título "Para Realizar a América - O Pensamento de Esquerda no Século 20 na América" (DP&A, 1999). O professor Renato Janine Ribeiro fez uma generosa menção ao meu nome no comentário ao livro (Mais!, 27/2). Pelo que entendi, ele discorda da diferença que fiz, na "Introdução", entre pragmatismo e neopragmatismo (A) e, também, discorda do subtítulo, em especial porque permanece nele o nome "América" -penso que Janine Ribeiro gostaria mais que eu colocasse "Estados Unidos" em vez de "América" (B). De modo breve, tento justificar minhas opções. 

A - Pragmatismo versus neopragmatismo

Centrei minha "Introdução" no tema da verdade em associação ao tema do pós-modernismo. Disse que o deflacionismo no campo da verdade - a idéia de que a verdade não deve ser tratada de modo metafísico/epistemológico, mas sim de modo semântico- corresponde, no âmbito do pós-modernismo, à descrença nas metanarrativas (Lyotard), uma espécie de "deflacionismo" ideológico e político. Ora, todo esse debate só tem sentido no campo neopragmático, pois no campo propriamente dos velhos pragmatistas (era pré-Quine e pré-Davidson) tudo isso não era tratado nos moldes da filosofia analítica. 

B - "Estados Unidos" versus "América"

O tipo de esquerda que Rorty defende deveria ter um papel específico, a saber: sempre lembrar as pessoas de que, quando os imigrantes vieram, eles vieram para "fazer a América". E o que era a "América" de que eles falavam? Ela era o sonho de liberdade, de tolerância política e religiosa, de crescimento de estilos de vida diferentes, de aumento da igualdade econômica e crescimento da riqueza cultural e moral -tudo o que fosse o contrário dos males do Velho Continente.

Rorty acha que a esquerda deve ser a consciência que chama a atenção de todos para essa "América", que está por ser realizada. Para Rorty, o sonho americano não morreu, até porque sua realização é tardia: só com o século 20 ele de fato começa: com o "New Deal", o movimento dos direitos civis, o feminismo, a campanha pelos direitos humanos etc. O livro é sobre a realização da "América", não dos "Estados Unidos".

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* GHIRALDELLI JR., Paulo. Pragmatismo samaritano. Folhã de S. Paulo, São Paulo, 26 mar. 2000. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2603200011.htm>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA). Dentre outros livros, publicou "Richard Rorty - a filosofia do novo mundo em busca de mundos novos" (1999) e "Ensaios pragmatistas - sobre subjetividade e verdade" (2006), este último em conjunto com Rorty.

Entrevista - Sou do contra*


Jurandir Freire Costa**
Luiz Eduardo Soares***

"A esquerda americana deveria tentar se lembrar de outras coisas que a Guerra do Vietnã", afirma Richard Rorty na entrevista a seguir, em que fala sobre o antiamericanismo dos intelectuais norte-americanos, a política das minorias nos EUA e a psicanálise. A entrevista foi concedida pelo filósofo aos professores Luiz Eduardo Soares e Jurandir Freire Costa, no Rio de Janeiro, no ano passado, e permaneceu inédita até hoje.

Na ocasião, o filósofo participava da conferência internacional sobre "Pluralismo Cultural, Identidade e Globalização", coordenada por Luiz Eduardo Soares e Candido Mendes de Almeida, com o apoio da Unesco. As conferências apresentadas no encontro foram reunidas em um livro com o mesmo título, que está sendo lançado nesta semana em edição não-comercial, em inglês, pela editora do Complexo Universitário Candido Mendes e Unesco.

Jurandir Freire Costa - Num artigo sobre o livro de Marcia Cavell "The Psychoanalytic Mind - From Freud to Philosophy", o sr. afirmou que deveríamos poder chegar a definir o sujeito de maneira bastante econômica como uma rede neural, de um lado, e, de outro, como uma rede linguística. É uma idéia que o sr. já havia defendido em escritos anteriores. Ou seja, se bem entendi, o sr. defende a idéia de que, se nos libertarmos da imagem do "teatro cartesiano", poderíamos dispensar a psicologia e guardar apenas a neurologia e a "folkpsychology" (psicologia popular). Esta ainda é sua atual impressão? Psicologia, psicanálise etc. estão destinadas a perder a importância que têm tido pelo menos desde o século 19?

Rorty - Diria que Freud ampliou a "folkpsychology" e não que ele criou uma nova ciência. A "folkpsychology" ampliou-se muito no curso dos séculos porque temos mais ilustrações, mais analogias. Podemos dizer isto de outro modo. Entre os intelectuais, não entre o povo, podemos falar de "momentos proustianos", "conversações jamesianas", "momentos de felicidade stendhalianos" etc. Tudo isso faz parte da "folkpsychology". Freud nos deu de um só golpe um enorme tesouro de analogias, de frases, de imagens, e com isso enriqueceu nosso vocabulário de descrição de nós mesmos, como certos romancistas. Eu diria que a "folkpsychology" não é exatamente "folk", mas também não é uma ciência.

Freire Costa - Com a expressão "não é exatamente "folk" o sr. quer dizer que não é popular?

Rorty - Sim. Entre nós, nos EUA, existem leitores que escrevem cartas aos jornais a propósito de questões pessoais. Existe uma senhora que lhes responde. As respostas são frequentemente muito boas. Quero dizer que, hoje, as respostas que encontramos nestas páginas seriam impossíveis sem Freud. Mas com isso não quero dizer que as respostas são simplesmente dadas "no jargão de Freud". É o pensamento de Freud mesmo que encontramos nelas! Poderíamos chamar isso de "folkpsychology". 

Eu creio que isso se aplica mesmo para Lacan. Assisti a uma conferência de Zizek, com muitos exemplos de cinema, de romances policiais etc. Pois bem, mesmo uma pessoa como eu, que não entendo quase nada de Lacan, pude compreender algumas frases como "o objeto sublime do desejo". Ou seja, trata-se de uma ampliação do conhecimento de nós mesmos. Eu não diria que Lacan descobriu uma grande verdade sobre a condição humana. Lacan, simplesmente, deu-nos, em minha opinião, uma outra perspectiva sobre nós, mas ainda uma perspectiva.

Freire Costa - O sr. quer dizer uma outra descrição?

Rorty - A meu ver, a psicanálise forma um contínuo com a literatura. Não é um assunto para ser estudado; é um assunto sobre o qual se escrevem bons livros que devem ser lidos.

Freire Costa - O que é que o sr. pensa da política da identidade? É uma boa ou uma má idéia?

Rorty - Em inglês temos a expressão "grupos de interesse". Os trabalhadores, as mulheres, os médicos, os professores etc. podem formar grupos de interesse. Subitamente, criamos a expressão "política de identidade". Eu penso que isso é uma mistificação. Naturalmente nós temos grupos de interesse. Mas identidade? Minha questão é: qual é minha verdadeira identidade? Homem? Professor? Branco? Eu penso que essa é uma questão que não merece ser posta!

Freire Costa - Não faz sentido querer fixar identidades?

Rorty - Se somos membros de um grupo oprimido, temos uma identidade como membro de um grupo oprimido. Se somos negros, se somos homossexuais e, por isso, quiserem bater-nos, então devemos protestar, devemos dizer: "Não! Não se pode bater em negros ou homossexuais". Mas saber o que é exatamente um homossexual ou, então, o que é exatamente a identidade negra, é uma questão para filósofos e não uma questão política. Eu sou membro da Associação Americana de Professores Universitários. Nós somos um grupo de interesse, quer dizer, temos leis que existem para nós. Mas não existe algo como "uma identidade profissional de professor".

Freire Costa - Quando se pergunta "o que é uma identidade?", o sr. acha que existe a tendência a buscar-se um referente imutável da "identidade"?

Rorty - Sim. Creio que na questão da política de identidade há sempre uma divisão entre essencialistas e antiessencialistas. Os essencialistas querem dar definições; os antiessencialistas dizem: "Não! O problema é muito complexo para que se possa definir, trata-se de um jogo infinito de diferenças etc.". Eu acho tudo isso tedioso. Existe uma batalha estéril entre aristotélicos e derrideanos (de Jacques Derrida). Eu não sei o que fazer com isso. Para divertir-nos, podemos escrever coisas deste tipo: o que é um professor, o que é uma mulher etc. Mas, falando politicamente, nada disso é sério.

Freire Costa - Mas o sr. não acha que, em discussões deste tipo, tentativas de descrever fatos de uma outra forma têm algum valor? Por exemplo, lembro de um texto de Stephen Jay Gould em que ele diz que a noção de raça é extremamente discutível em biologia ou zoologia. Ou seja, por que continuamos guardando esta noção aplicada aos humanos, quando muitos já a abandonaram no estudo do reino animal? O sr. não acha que vale a pena discutir coisas como esta, dizendo que isso não faz sentido?

Rorty - Sim, mas acho que é mais importante descrever, por exemplo, as particularidades da vida de um homem negro, de uma mulher pobre etc. É verdade que num nível mais abstrato podemos fazer redescrições. Isso talvez possa ser útil. Mas o que considero verdadeiramente útil é descrever os indivíduos em termos novos, imaginativos, e não de maneira abstrata. Nos últimos anos, temos uma literatura homossexual enorme, o que é bem mais útil do que a "Psychopathia Sexualis" (de Kraft-Ebing) ou mesmo do que as teorias de Freud sobre o assunto.

Luiz Eduardo Soares - A impressão que o sr. tem a respeito de seus colegas, os filósofos profissionais, foi um fator que pesou em sua decisão de abandonar os departamentos de filosofia e se transferir para as ciências humanas?

Rorty - Essas decisões sempre são um pouco pessoais, as relações pessoais que se tem com os colegas entram em jogo. Eu não estava me dando muito bem com meus colegas, estava lá havia 20 anos. Eles estavam entediados comigo, e eu com eles. Isso também era mau para meus alunos. Nos Estados Unidos, se um estudante escreve uma dissertação sobre Heidegger, é um escândalo. Então os alunos diziam: "Posso escrever sobre Heidegger?". Claro, mas meus colegas não vão gostar. Isso criava situações difíceis. O tipo de estudante que eu gosto é aquele que lê de maneira onívora, que lê de tudo, então é esse o tipo de estudante que eu atraio, mas não é uma recomendação geral.

Soares - Seu texto vem se tornando cada vez mais direto, seco, simples, é claro que não menos complexo, mas mais simples. Dá a impressão de ser uma decisão deliberada, um projeto, como se o sr. precisasse de uma certa estética do escrever para estabelecer um palco ou para dramatizar, para possibilitar também uma maneira de pensar ou talvez de comunicar, e minha impressão é que se torna muito evidente a qualquer um que o lê mais atentamente que isso parece constituir um diálogo íntimo e não dito com a filosofia francesa, na qual a retórica é tão importante.

Rorty - Isso ocorre porque existe muita imitação dos franceses entre meus colegas dos departamentos de literatura. As pessoas para as quais eu escrevo nos EUA tendem a ter lido Derrida e Lacan e escrevem numa espécie de imitação francesa, e, assim, para irritá-las, escrevo de maneira tão diferente da francesa quanto possível. Você sabe o que é "do contra" - alguém que faz tudo do jeito oposto. Eu sou do contra. Se todo mundo está fazendo de um jeito, sempre vou tentar fazer de algum jeito diferente. Eu simplesmente gosto de efeitos verbais.

Soares - Qual o escritor de sua preferência?

Rorty - Aqueles sobre os quais escrevi: Proust, Nabokov, Henry James. Mas também tenho livros favoritos que já li e reli muitas vezes. Acho que todo mundo tem livros assim. Não é que sejam grandes livros ou que você aprenda alguma coisa com eles, você os ama, apenas, então os relê muitas vezes.

Soares - Por exemplo?

Rorty - Há um escritor inglês, Max Beerbohm, que escreveu um livro chamado "Zuleika Dobson". Publicado em 1912, é um romance muito engraçado, um romance de humor. Acho que é um dos livros mais engraçados que já li na vida. Eu o releio a toda hora. Falo a meus alunos sobre o livro, e eles não entendem a graça. O livro não quer dizer nada para eles.

Soares - Tenho ouvido reações indignadas contra suas considerações e relações a respeito do patriotismo. O modo como o sr. expressa sua relação, sua admiração pelos Estados Unidos. Essas reações vêm de intelectuais que também são norte-americanos.

Rorty - Tínhamos uma esquerda patriótica nos EUA até a Guerra do Vietnã. Ou seja, as pessoas de esquerda nos EUA achavam que os EUA eram um grande país, que poderíamos recuperar os bons velhos tempos de Lincoln e Wilson. Depois veio a Guerra do Vietnã e de repente os intelectuais de esquerda norte-americanos disseram que o país não prestava, que eles tinham sido enganados. A esquerda norte-americana ainda acha que os EUA são um país terrível. Mas é claro que os cidadãos não acham que sejam um país terrível, ainda acham que é um grande país. Então meu argumento é que a esquerda nos EUA deveria tentar se lembrar de alguma coisa além do Vietnã.

Ela deveria parar de dizer que este é o país que oprimiu os negros, que matou os vietnamitas, que este é o país racista, o país sexista. Praticamente todos os países são imperialistas, racistas e sexistas e, comparado a outros países, este é OK. Em meu artigo "Intellectuals in the Fore", em que há várias páginas sobre o antiamericanismo, o que procuro argumentar é que a esquerda adotou essa política da identidade, na qual se considera que devemos abandonar a idéia do Grande Sonho Americano como se fosse ilusão. Quero dizer que é melhor não o abandonarmos, pois é tudo que temos. É o único meio de comunicação existente entre a esquerda e o público.

Soares - Admitiria políticas defensivas, como a ação afirmativa?

Rorty - Claro.

Soares - É favorável à manutenção da política de ação afirmativa?

Rorty - Não por ser um reconhecimento de identidade, mas porque, se tivermos ação afirmativa, este país será mais simpático.

Soares - O sr. não acha que o feminismo, enquanto movimento, nasceu fora desse contexto? Ou ele teria vindo dentro dele?

Rorty - Não, houve o que chamam de feminismo de primeira onda, em 1920, a questão do sufrágio, e ninguém achava que era uma questão de identidade, era uma questão de direitos. Depois o feminismo de segunda onda se dividiu entre pessoas que diziam "direitos" e as pessoas que diziam "identidade", porque haviam lido francês. Os americanos, na minha opinião, falam demais sobre direitos. Mas, entre direitos e identidade, é melhor falar sobre direitos. É melhor dizer simplesmente "é injusto" do que dizer "minha identidade não está sendo reconhecida". Acho que a identidade virou objeto de fetiche. Os intelectuais nos EUA passam 90% de seu tempo falando sobre identidade, isso não tem ligação com uma disciplina política, é uma espécie de preocupação estética.

Soares - Como o sr. avalia o cenário político atual?

Rorty - Acho que os republicanos são completamente corruptos, no sentido em que simplesmente trabalham em prol dos ricos. São completamente cínicos. Não existe pretensão de fazer nada exceto deixar os ricos ainda mais ricos. Acho que entre os democratas ainda há algumas pessoas que se preocupam com o país. Acho que pessoas como Clinton e Bradley são homens decentes e inteligentes. Não há candidatos republicanos interessantes. Dole é um homem inteligente e completamente destituído de escrúpulos.

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* COSTA, Jurandir Freire, SOARES, Luiz Eduardo. Sou do contra. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 out. 1997. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs121010.htm>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Jurandir Freire Costa é psicanalista e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Redescrições da Psicanálise" (1994) e "O Risco de cada um e outros ensaios de psicanálise e cultura" (2007).

*** Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Elite da Tropa" (2008) e "Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo" (2011).

Um mestre iconoclasta*


Richard Rorty

A morte, em junho último, de Thomas Samuel Kuhn, o mais influente filósofo de língua inglesa desde a Segunda Guerra Mundial, foi ocasião de muitos obituários extensos e respeitosos. Muitos deles referiam-se a ele antes como historiador da ciência que como filósofo. Kuhn não teria feito objeções a essa descrição, que entretanto é enganadora.

Se tivesse escrito um obituário, não teria deixado de chamar Kuhn de filósofo, e por duas razões. Em primeiro lugar, creio ser este o termo mais apropriado para alguém que remapeia a cultura, isto é, sugere um modo original e promissor de pensar a relação entre vários setores da atividade humana. A grande contribuição de Kuhn foi a de indicar uma nova direção, cujo impacto sobre a auto-imagem de várias disciplinas foi enorme.

Minha segunda razão é o ressentimento pelo fato de Kuhn ter sido constantemente tratado por meus colegas filósofos como, na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda classe na comunidade filosófica, quando não como um intruso que não tinha por que se meter com uma disciplina para a qual não tinha a formação adequada. Não creio que se deva fazer grande caso da distinção filósofo/não-filósofo, e de modo algum quero torná-la mais aguda. Mas sempre achei irritante que pessoas que usavam o título de "filósofo" como honraria quando falavam de si próprias e de seus amigos se julgassem no direito de não concedê-lo a Kuhn.

Kuhn foi um dos meus ídolos, porque a leitura de "A Estrutura das Revoluções Científicas" (1962) -no Brasil, publicado pela Perspectiva - proporcionou-me a sensação de uma súbita revelação. O fato de ele abordar problemas filosóficos por assim dizer "pela lateral" - tendo-se doutorado em física antes de se tornar historiador autodidata da ciência do século 17 - não me parecia razão suficiente para excluí-lo de nossas fileiras. A principal razão pela qual Kuhn foi mantido à distância pelos professores de filosofia está no domínio que a tradição da filosofia "analítica" exerceu no mundo acadêmico anglófono. Essa era uma tradição que se orgulhava de ter trazido a filosofia para mais perto da ciência - logo, para mais longe da literatura.

A última coisa que os filósofos dessa tradição queriam ver abalado era o caráter distintivo da ciência; assim, não estavam prontos para ouvir de Kuhn que o sucesso da ciência não se deve à aplicação de um "método científico" específico, e ainda que a substituição de uma teoria científica por outra não é algo que dependa apenas da lógica fria e precisa, sendo antes análoga ao processo de substituição de uma instituição política por outra.

A grande contribuição de Kuhn ao remapeamento da cultura reside em ter-nos feito ver que os cientistas naturais não têm uma via de acesso privilegiado à realidade e à verdade. Ele ajudou a desmontar a hierarquia tradicional de disciplinas, uma hierarquia que remonta à imagem platônica da reta do conhecimento.

Nessa hierarquia, a matemática (que usa lógica pura, sem nenhum elemento de retórica) está no alto, enquanto a crítica literária e a persuasão política (que usam muita retórica e nenhuma lógica) estão na posição mais baixa. Kuhn dissolveu a distinção entre lógica e retórica ao mostrar que mudanças revolucionárias na ciência dependem menos de seguir uma linha de inferências que de mudar a terminologia em que as hipóteses concorrentes são formuladas (assim reformulando igualmente os critérios de relevância). Kuhn ajudou assim a romper com a idéia de "cânones do raciocínio científico" que Aristóteles, ao contrário de Galileu, supostamente não teria observado.

Por essa via, ele ajudou a tornar obsoleta a questão de "como trazer nossa disciplina para o caminho seguro da ciência?". Kant propusera essa questão no domínio da filosofia; Husserl e Russell tinham respostas divergentes; B.F. Skinner pedia aos psicólogos que se restringissem a um vocabulário de noções como "estímulo", "resposta", "condicionamento" e "reforço"; e Northrop Frye sugerira uma taxonomia dos mitos, uma série de escaninhos que os críticos literários do futuro cuidariam de preencher.

É claro que tornar obsoleta uma tal questão não era tarefa para um homem só. Kuhn tinha atrás de si uma série de autocríticas da filosofia analítica, da parte do último Wittgenstein, Quine, Sellars, Goodman e outros -autocríticas que eram um dos principais tópicos de discussão no período (1955-1965) que viu a publicação de "A Estrutura das Revoluções Científicas".

Todos esses filósofos autocríticos haviam, em sua juventude, aceito a sugestão russelliana de que "a lógica é a essência da filosofia", bem como sua visão de filosofia como análise de noções complexas rumo a seus elementos mais simples. Mas, num certo momento, todos se tornaram céticos quanto à existência de uma "lógica" que os guiaria ao longo de uma tal análise, bem como quanto à existência de elementos simples que constituiriam o resultado final da análise. Os candidatos de Russell a essa função -os dados da experiência sensorial, as idéias claras e distintas de "e", "não" e "se-então", que formam o vocabulário da lógica simbólica elementar- já não pareciam satisfatórios. Goodman mostrou que o próprio ideal de simplicidade é apenas uma entre várias opções de descrição.

Sellars, à maneira de Kuhn, mostrou que não há maneira a priori de selecionar, em nossas experiências sensoriais, aquilo que é "dado à mente" e aquilo que é "adicionado pela mente". Wittgenstein perguntou-se "Por que pensávamos que a lógica fosse algo de sublime?". Quine e Goodman, tomando apoio em Skinner, mostravam que talvez fosse melhor entender a lógica como um padrão de comportamento humano e não como uma força imaterial a moldar esse comportamento.

Ninguém jamais pensou que tais críticos do que Quine chamava de "dogmas do empirismo" -aquelas doutrinas que Russell e Carnap tinham por evidentes- não fossem filósofos. Pois nenhum deles ameaçava a auto-estima profissional ou o hábito da autocongratulação que fazia com que todo filósofo analítico desse graças a Deus por ter nascido na época certa -uma época em que a filosofia tornara-se clara, rigorosa e científica. Mas Kuhn punha a perigo essa auto-estima, pois a leitura de seu livro fez muito filósofo analítico pensar se a noção de "clareza científica" era afinal tão clara, rigorosa e científica quanto supunham.

Também começava a duvidar que a lógica simbólica trouxesse algo mais que elegância estilística à prosa dos filósofos analíticos; também já não sabia se a clareza e o rigor de que tanto nos orgulhávamos era algo mais que uma certa preferência por responder a algumas questões e por ignorar outras. Tanto quanto era capaz de perceber, o que nos fazia "analíticos" não tinha nada a ver com um método de "análise conceitual" ou de "investigação da forma lógica". O que nos unia era o fato de levarmos a sério algumas doutrinas propostas por Carnap e Russell a ponto de querermos refutá-las.

A noção de história da ciência proposta por Kuhn -a saber, a história das "matrizes disciplinares" na história da ciência- foi de grande ajuda para mim quando tentei formular esse diagnóstico da filosofia analítica. O mesmo vale para sua noção de paradigma. Depois de ler a "Estrutura", comecei a entender a filosofia analítica como uma maneira entre outras de fazer filosofia, e não mais como a descoberta de como assestar a filosofia de uma vez por todas no caminho seguro da ciência. Isso levou a certa irritabilidade no convívio com os meus colegas, a maioria dos quais pensava que Kuhn não fizera muito mais que mostrar que certos pontos da visão de Carnap de uma "lógica da ciência" necessitavam de algumas correções menores; esses colegas pareciam não ver qualquer implicação metafilosófica na obra de Kuhn.

Comecei a pensar que Carnap e Russell haviam sugerido uma certa versão de filosofia, tal como Aristóteles, Locke e Kant haviam feito. Cada um destes havia criado uma matriz disciplinar e, por essa via, uma tradição filosófica -uma tradição de pessoas que levava a sério a terminologia e a argumentação dos mestres. Nessa visão kuhniana, Carnap e Russell haviam estabelecido um modelo do que deveria ser a filosofia, enquanto a "filosofia analítica" dedicava-se a testar a utilidade desse modelo. O modelo podia mostrar-se profícuo, tal como podia mostrar ser apenas uma maneira de requentar velhas controvérsias filosóficas num novo jargão. Só o tempo diria. Mas não havia razão a priori para pensar que a lógica simbólica ou o "rigor-e-clareza" valeriam a pena. Não havia razão para pensar que o modelo positivista de filosofia fosse mais científico ou mais rigoroso que o modelo de Hegel, Husserl ou Heidegger.

Não estou querendo dizer que Kuhn demonstrou o vazio da noção de "cientificidade". Tal como outras idéias vagas e estimulantes, também esta pode ser preenchida e concretizada de várias maneiras. Uma delas consiste em inquirir se uma disciplina pode produzir previsões precisas, de modo a poder ser aplicada à engenharia ou a qualquer outro propósito prático. A mecânica de Galileu era ótima nisso, ao contrário da aristotélica. A medicina antes de Harvey oferecia menos previsões confirmáveis que depois de Harvey.

Mas Kuhn ajudou-nos a perceber que não há sentido em tentar explicar um maior sucesso preditivo afirmando, por exemplo, que Galileu e Harvey eram "mais científicos" que Aristóteles e Galeno. Ao mostrarem que somos capazes de fazer mais previsões do que pensávamos, esses dois homens contribuíram para alterar o sentido de "ciência" de modo que "ser capaz de fazer previsões úteis" passou a ser um critério de "cientificidade" mais importante do que fora antes.

É claro que essa maneira de determinar o conteúdo da noção de cientificidade não é de qualquer utilidade quando se passa à filosofia. Os filósofos jamais foram bons em predições. Assim, para propósitos metafilosóficos, o critério de cientificidade tem que ser a capacidade de conquistar a concordância entre os pesquisadores. A razão pela qual os admiradores da física têm desconfiança diante da crítica literária deriva da ausência de consenso quanto à interpretação correta de um texto: parece que, de algum modo, qualquer um pode dizer o que bem entender a respeito do significado do texto e ainda assim ser levado a sério como crítico. No extremo oposto, os matemáticos em geral são unânimes quanto à validade de um teorema. Os físicos estão mais próximos dos matemáticos, enquanto os cientistas sociais estão mais para o lado da crítica literária.

O problema é que a concordância intersubjetiva sobre quem teve êxito e quem fracassou só é fácil de determinar se os critérios de sucesso são dados de antemão. Se tudo o que se deseja é o alívio rápido da dor, a opção por um analgésico é natural (ainda que a vitória possa ter efeitos colaterais indesejáveis e tardios). Se o que se quer da ciência é apenas a capacidade de previsão, há um modo fácil de decidir entre duas ou mais teorias (ainda que esse critério devesse levar, num certo momento histórico, à adoção da astronomia ptolemaica, de preferência à copernicana).

Se tudo o que se quer é demonstração rigorosa, nada mais fácil que checar as provas dos teoremas matemáticos e entregar os louros a quem tiver mais teoremas aprovados (ainda que o prêmio acabe por ir para algum trapaceiro, autor de teoremas irrelevantes). Mas a concordância intersubjetiva fica mais difícil de atingir tão logo os critérios de sucesso comecem a proliferar ou a ser questionados.

A leitura de Kuhn levou-me a pensar que, em vez de mapear a cultura com uma régua hierárquica epistêmico-ontológica, encimada pelas categorias de "lógico", "objetivo" e "científico", deveríamos antes tentar mapear a cultura por meio de um espectro sociológico indo da esquerda caótica -em que os critérios estão sempre em mutação- à direita conformista -em que eles estão, ao menos por algum tempo, firmemente estabelecidos.

Pensar nos termos de um tal espectro possibilita perceber o movimento de uma dada disciplina rumo à esquerda nos períodos revolucionários e rumo à direita nos períodos estáveis e monótonos -que Kuhn chamava de períodos de "ciência normal".

No século 15, quando quase toda a filosofia era escolástica e quase toda a física era aristotélica, ambas as disciplinas estavam bem à direita. No século 17, ambas estavam bastante à esquerda, enquanto a crítica literária estava muito mais à direita do que estaria depois do movimento romântico. No século 19, a física se estabelecera e rumara à direita, coisa que também a filosofia tentava desesperadamente fazer. Mas esta última acabaria por se cindir em tradições separadas, cada qual reclamando para si o título de filosofia "genuína", a partir de critérios próprios de sucesso profissional. Sob este aspecto -falta de consenso internacional sobre o que é válido ou inválido-, a filosofia está muito mais próxima da crítica literária que de qualquer ciência natural.

Essa nova visão sociológica da relação entre as disciplinas fez com que muita gente pensasse em termos mais relaxados sobre seus próprios métodos de pesquisa ou sobre o produto -ciência ou opinião?- de seus esforços profissionais. Desde que começaram a ler Kuhn, os sociólogos começaram a aceitar mais facilmente a grandeza intelectual de Weber e Marx, a despeito de não terem tido acesso aos métodos contemporâneos de análise estatística. Isso por sua vez lhes permite reconhecer que sociólogos contemporâneos que se abstêm de usar estatísticas - David Riesman ou Paul Starr, por exemplo - podem ser admitidos como praticantes honrados de seu ofício. Tomemos um outro exemplo: desde que leram a "Estrutura", os psicólogos parecem menos ansiosos por saber se a psicologia freudiana é tão "cientificamente respeitável" quanto as experiências de Skinner com pombos.

A essa altura, todas as ciências sociais passaram por um processo de "kuhnização", marcado por uma maior disponibilidade para admitir que não há um modelo único de pesquisa relevante num dado setor da cultura. Tais critérios mudaram no curso da história e continuarão a mudar. Ainda que a filosofia tenha até certo ponto se mantido à parte desse processo, creio haver também aí uma maior disponibilidade em historicizar as questões -isto é, em conceder que não há qualquer divisor de águas que nos permita separar o "sentido" do "não-sentido", em admitir que mesmo Hegel ou Heidegger podem ter feito algo de filosoficamente relevante.

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* RORTY, Richard. Um mestre iconoclasta. Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 out. 1996. Tradução de Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/06/mais!/17.html>. Acesso em: 02 fev. 2015.