Richard Rorty
Ao visitar Belgrado no ano passado, perguntei aos meus anfitriões,
todos eles intelectuais antibelicistas, se os Estados Unidos poderiam
fazer alguma coisa para melhorar a situação na Bósnia.
Responderam-me que não havia nenhum grande problema geopolítico a
ser resolvido, que se tratava de um bando de gangues bem armadas e
lideradas por chefetes sanguinários. Cada uma dessas gangues age por
si só, tem seus próprios fornecedores de armas baratas e
ultramodernas. Formam alianças frágeis entre si, ditadas sempre por
necessidades passageiras. Nenhuma visa a algo além de pilhagens e
estupros para seus soldados e contas bancárias na Suíça para os
chefes. Identidade étnica e ideologia têm pouco lugar, a não ser
para fins de recrutamento.
A se acreditar nos meus anfitriões sérvios, não haveria grande
necessidade de negociações diplomáticas ou sábias reflexões
sobre a história dos Balcãs, mas sim um bom contingente de
policiais bem armados: a situação na fronteira bósnia não seria
tão diferente assim da que impera em algumas partes de Los Angeles
ou Chicago. Muita gente decente na ex-Iugoslávia foi forçada por
essas gangues a ferir seus vizinhos, tal como acontece àqueles que,
em Chicago, já não esperam proteção da força policial. Esses
cidadãos de Chicago pagam impostos para um governo que lhes oferece
bem pouco em troca, em boa medida porque o dinheiro dos bairros ricos
fora da cidade não contribui em nada para o orçamento municipal. Na
Bósnia, as pessoas têm que pagar tributos aos chefetes militares,
em boa parte porque o dinheiro das grandes democracias industriais
não chega aos cofres das Nações Unidas.
Boa parte do dinheiro
que as democracias industriais gastam consigo mesmas vem da produção
e comércio de bombas de fragmentação, fósforo branco, pistolas
automáticas, mísseis terra-ar e outros itens que tornam a vida mais
fácil para os senhores da guerra no Burundi ou na Bósnia. E para
que nós, a classe média americana, continuemos a ganhar o dinheiro
necessário para o nosso conforto e segurança, é necessário que
haja um vasto exército industrial de reserva disposto a aceitar um
salário miserável por um trabalho pouco especializado. Gastamos um
bom tempo a deplorar os hábitos violentos de povos que, exatamente
tal como nós, não podem se apoiar no monopólio estatal da
violência. Mas não deixamos de lucrar com as condições que tornam
essa violência inevitável.
E entretanto não hesitamos muito em pagar pelos serviços de uma
força policial destinada a conter as gangues de um país distante.
Ainda não somos tão egoístas a ponto de ficarmos indiferentes ao
genocídio em Ruanda e na Bósnia. Não paramos de dizer que
deveríamos fazer alguma coisa. Ficamos apavorados com a idéia de
compartilhar um pouco de nossa riqueza com as pessoas que nos servem
o almoço e varrem o chão de nossos escritórios, mas não nos
importamos de usar um pouco do gigantesco orçamento militar
americano para salvar alguns lares e vidas estrangeiros.
E,
entretanto, sempre que essa possibilidade é mencionada, Washington
não faz outra coisa senão enumerar em detalhes as dificuldades das
propostas de ação concreta. Nenhum presidente americano está
disposto a pôr em risco sua reeleição dando ordens que podem
custar vidas americanas -a não ser que essas mortes se dêem no
curso de uma rápida e esmagadora vitória. Justamente uma vitória
assim não é possível em uma Bandenkrieg, uma guerra contra bandos
armados. E são essas as guerras que aguardam muitos países pobres
(incluídos aí a Rússia e a China, onde parece haver armas
nucleares para quem quiser apossar-se delas).
Há 50 anos, pensávamos que o mundo aprendera algumas lições
com o fracasso da Liga das Nações na Etiópia, e que, portanto, as
Nações Unidas seriam bem diferentes. Talvez ainda seja tempo.
Tornada irrelevante pela Guerra Fria, a ONU tem agora uma nova
chance. Suponha-se que, por um instante, deixássemos a idéia (por
agora risível) da "liderança mundial americana" e, de
modo mais geral, a idéia de que cada democracia industrial deve
tomar uma atitude própria frente às novas Bandenkriege. Suponha-se
que nossos políticos se reúnam e percebam que estão complicando
desnecessariamente suas próprias vidas com a necessidade de esconder
suas políticas inertes por detrás de uma retórica moralista.
Talvez esses políticos percebessem que valeria a pena conceder à
ONU algum poder real, ao menos para evitar repetidos embaraços.
Suponha-se, mais concretamente, que as democracias industriais
pusessem metade de suas unidades de combate à disposição de um
comando militar nomeado pela ONU. Isso significaria que metade dos
marines, dos rangers, dos seals da Marinha e de toda a turminha de
Tom Clancy (mais seus equivalentes nas forças armadas do Reino
Unido, da França, da Espanha, da Alemanha, da Índia, do Brasil etc)
estariam à disposição do Conselho de Segurança para suprimir
Bandenkriege.
Essas unidades são formadas por aquele tipo de
jovem disposto e até mesmo desejoso de arriscar sua vida em combates
violentos e imprevisíveis. Sempre haverá jovens assim, e seria bom
usar suas energias para propósitos dessa natureza. Tais pessoas são
pouco compreensíveis para nós, intelectuais -mas o inverso também
vale, e eles, tal como nós, têm sua utilidade. Em sua maioria, não
são sádicos -ainda que alguns o sejam (outra vez, tal como entre
nós, intelectuais). Se essas pessoas pudessem ter alguma certeza de
que se baterão não para preservar o conforto dos ricos ou o preço
baixo do petróleo, mas para salvar pessoas inocentes, possivelmente
se alistariam nas unidades de combate de seus países com a intenção
explícita de servirem sob as Nações Unidas.
Se algo assim viesse a existir, talvez tivéssemos, em uma ou duas
décadas, uma força policial internacional experiente de, digamos,
meio milhão de homens e mulheres. Essas pessoas seriam pagas e
armadas por suas nações respectivas, mas seu "esprit de corps"
seria ligado à sua atuação como capacetes azuis -como homens e
mulheres devotados à proteção de inúmeras viúvas, órfãos e
refugiados.
Os comandantes dessa força viriam a ter sobre as decisões do
Conselho de Segurança a mesma influência que um chefe de polícia
honesto e experiente tem sobre as decisões de uma prefeitura. Esses
oficiais seriam capazes de reunir sobre uma determinada área os
aviões mais modernos, equipados com defesas contra mísseis terra-ar
e sistemas de mira de última geração. Poderiam convocar as frotas
de todo o mundo para transportar suas forças para qualquer lugar.
A indústria de armamentos (um setor da indústria cujo poder se
deduz da raridade com que aparece nos jornais ou nas TVs) teria os
maiores lucros. Ela poderia vender seus produtos para os governos que
mantêm capacetes azuis, ao passo que só venderiam armas
ligeiramente obsoletas ou ligeiramente defeituosas aos senhores da
guerra locais. Seria uma maneira de lucrar fazendo o bem.
Seria ótimo dar um fim a esses cínicos mercadores da morte, como
seria ótimo fazer algo quanto à indústria de cocaína e heroína,
ou quanto àquelas pessoas que, na China e na Índia, estão
desviando bens públicos para contas privadas na Suíça. Mas ninguém
sabe por onde atacar esses problemas, enquanto que as Bandenkriege e
seus horrores parecem ser um problema solúvel.
____________
* RORTY, Richard. Meio milhão de capacetes azuis. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 jan. 1996. Tradução de Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/1/07/mais!/22.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.
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