Richard Rorty
Quando jovem, Derrida levou Marx muito a sério, leu-o
intensamente e ainda hoje o recorda com afeição e gratidão
-exatamente como faz com Shakespeare. Derrida é famoso não só por
sua memória fabulosa como também por um sentido de lealdade
caloroso e sentimental. Se uma pessoa ou livro alguma vez
significaram alguma coisa para ele ou de alguma forma contribuíram
para seu percurso individual, não será Derrida quem o esquecerá ou
abandonará no meio do caminho.
Sua lealdade à memória de um
amigo morto levou-o a escrever um longo e dilacerado ensaio em reação
à denúncia contra o passado anti-semita de Paul de Man ("Como
o Som de uma Concha Dentro de Outra Concha: a Guerra de Paul de
Man"). Sua grande dívida para com os livros de Heidegger
moveu-o a escrever repetidamente a seu respeito, com delicadeza e
sensibilidade crescentes. Até agora não havia escrito nada sobre
Marx, falha que agora mais que supre com este "Espectros de
Marx".
O que mais interessa a Derrida é que Marx nos faz pensar na
possibilidade da justiça. A "justiça", na obra de
Derrida, tem um papel muito especial: ela é o nome para a grande
esperança romântica, para o "Grande Indesconstrutível",
a única coisa que não seria passível de ironia. A idéia de
justiça, a idéia do que Derrida chama "a grande democracia por
vir", está sempre a rondar a Europa. E provavelmente é isto o
que a Europa tem de melhor, que torna o eurocentrismo ainda atrativo.
Se, à maneira de Derrida, tomarmos Marx como o exemplar mais notável
do desejo europeu por justiça, é bastante plausível dizer que
"será sempre um erro não ler e reler Marx (...) será cada vez
mais um erro, uma falta de responsabilidade política e filosófica
(...) não há futuro sem Marx, sem a memória e o legado de Marx, em
todo caso de um certo Marx, de seu espírito, ou ao menos de um de
seus espíritos".
A função de expressões como "um certo Marx" ou "ao
menos um de seus espíritos" é a de permitir a Derrida deixar
de lado tudo o que não lhe agrada em Marx -tal como nós mesmos
esquecemos todos os pontos fracos de nossos antigos amantes, que
poderiam empanar a glória de nossos antigos amores. Ao dizer que há
muitos Marx, para então descartar a maioria deles, Derrida pode
preservar "Marx" como quase-sinônimo de "justiça"
e, por essa via, sair-se com a declaração de que "este gesto
de fidelidade a um certo espírito do marxismo é uma
responsabilidade que recai sobre todos".
Se a causa final de "Espectros de Marx" é a justiça,
sua causa material é o uso entrelaçado de palavras como "espírito",
"assombração", "fantasma", "espectro"
etc. Bem no começo do livro, Derrida escreve: "Se agora me
apresto a falar longamente sobre fantasmas, heranças, gerações,
gerações de fantasmas, isto é, sobre certos outros que não estão
nem presentes nem vivos, seja para nós, em nós ou fora de nós,
faço-o em nome da Justiça. Da Justiça onde ela ainda não está,
ainda não chegou, onde não está mais, em suma onde ela não está
presente e onde nem ela nem a lei jamais serão redutíveis às leis
ou aos direitos".
Em outras palavras, a justiça é aquilo que a metafísica da
presença está sempre tentando (em vão) identificar a algum
conjunto de instituições e princípios. Tal identificação é
impossível, porque toda instituição ou princípio produzirá novas
e inesperadas formas de injustiça. Toda utopia criará um movimento
de protesto social. A justiça é um fantasma que não se aprisiona
jamais.
Por mais que admire a intensidade da esperança de Derrida
por justiça, não estou certo quanto às razões de sua escolha de
Marx como exemplo notável dessa esperança. Não estou certo de que
sua lealdade a Marx, sua insistência para que todos nós continuemos
a lembrar Marx, seja mais que a recordação de um encontro juvenil
significativo, mas acidental.
Não há dúvida de que a história do socialismo europeu, ao
longo de mais ou menos 200 anos de história, é o maior exemplo de
esperança ativa por justiça. Concordo com Kolakowski quando ele diz
que "a crença apocalíptica na consumação da história, na
inevitabilidade do socialismo, na sequência natural de 'formações
sociais', na ditadura do proletariado, a exaltação da violência, a
fé nos efeitos automáticos da nacionalização das indústrias, as
fantasias sobre uma sociedade sem conflitos e sem dinheiro -tudo isso
não tem nada a ver com a idéia de socialismo democrático. A
proposta deste último é a de criar instituições capazes de
gradualmente reduzir a subordinação da produção ao lucro, acabar
com a miséria, diminuir a desigualdade, remover as barreiras sociais
à educação e minimizar a ameaça burocrática ou totalitária às
liberdades democráticas".
Suponhamos que, em vez de escrever "será sempre um erro não
ler e reler Marx", Derrida tivesse escrito "será sempre um
erro deixar de pensar na possibilidade de se construírem
instituições capazes de promover as metas do socialismo
democrático, assim como será um erro não ter sempre em mente a
brutalidade, a desonestidade e a hipocrisia dos que se opõem a esses
objetivos". Seria fácil concordar com ele. Ele obteria a mesma
concordância se tivesse escrito "socialismo" em vez de
"Marx", contanto que tivesse distinguido, como faz
Kolakowski, entre socialismo como nacionalização da indústria e
socialismo como construção de instituições voltadas para as metas
que ele e Kolakowski compartilham. Este último concordaria
facilmente com Derrida quanto à necessidade de impedir que o
regozijo atual sobre o fim do socialismo no primeiro sentido
distraísse-nos do esforço por um socialismo no segundo sentido.
Mas, tal como eu próprio, Kolakowski talvez se espantasse com a
crença de Derrida em que, "para analisar essas guerras e a
lógica desses antagonismos (criados pelo protecionismo, pelo GATT,
pela superprodução e a dívida externa etc.), a problemática
marxista será ainda por muito tempo indispensável".
Derrida não se esforça muito por apoiar essa última afirmação.
Ele alterna entre o Marx pensador da justiça ou da democracia por
vir (uma função que John Dewey e Roberto Unger poderiam muito bem
desempenhar) e o Marx formulador de uma problemática insubstituível.
Mas Derrida não especifica o que há no senso de justiça de Marx
para tornar suas formulações de problemas sócio-econômicos tão
úteis, assim como não especifica jamais essa utilidade. É verdade
que ele lista os dez maiores problemas que ameaçam tornar vãs todas
as esperanças européias: desemprego crescente, a exclusão política
dos cidadãos pobres, a implacável guerra econômica entre as
nações, a globalização do mercado de trabalho, a dívida externa,
a indústria de armamentos, a proliferação nuclear, as guerras
étnicas, a máfia e os cartéis do tráfico de drogas, a impotência
das leis internacionais. Mas sua discussão desses problemas não
exibe qualquer traço caracteristicamente marxista.
A ingenuidade não é tão comum nos dias que correm, de modo que
é difícil achar alguém que vá se intrigar com a seguinte
desconstrução da distinção marxista entre valor de uso e valor de
troca: "Marx quer saber quando, em qual momento preciso, em qual
instante o fantasma surge no palco (...). Em contraste, estamos
sugerindo que muito antes desse 'coup de théâtre', antes de entrar
no palco sob a forma de mercadoria, o fantasma já se imiscuíra,
ainda que por definição sem aparecer em pessoa, mas já tendo
introduzido no valor de uso, na madeira dura e sólida da mesa rija o
elemento de repetição (e logo de substituição, conversibilidade,
iterabilidade, perda de singularidade, donde a possibilidade do
capital) sem o qual não seria sequer possível determinar um uso".
Esse esvaziamento da madeira dura e sólida parecerá familiar aos
leitores -pessoas que, como diz Derrida, "conhecem grego antigo
e filosofia". Nós que lemos a "Metafísica de Aristóteles"
já conhecemos essa "hyle" (o termo grego para "madeira",
que Aristóteles usou para designar "matéria"). Percebemos
a questão e a piada.
Mas quem precisa de pessoas sofisticadas e poliglotas nestes
últimos tempos? Bem, nós certamente precisamos uns dos outros.
Pessoas como eu precisam de pessoas como Derrida -gente capaz de ler
os livros que eu li e torná-los novos e maravilhosos. Nós
precisamos de heróis e exemplos como ele -pessoas que se recriam por
meio da releitura e redescrição de tudo, de Parmênides ao cartão
postal, e assim ajudam-nos a recriarmo-nos. Mas o socialismo
democrático precisa dele ou de mim? Ou será que o tipo de coisa que
Derrida faz neste seu livro é útil (usando aqui um termo que me
agrada, mas não a Derrida) para fins não apenas privados, mas
também públicos?
Essa questão repropõe uma anterior: é realmente um erro não
ler e reler Marx? Ou será que é um erro apenas para aqueles que
conhecem grego e filosofia? Será que Marx não é mais que um íncubo
para as demais pessoas?
Essas são perguntas a que gostaria de responder, mas sou muito
ignorante para fazê-lo. Minha queixa principal quanto a "Espectros
de Marx" diz respeito à pouca ajuda que o livro me deu em
responder a essas questões. Derrida pressupõe a importância de
Marx e então torna as coisas fáceis para si mesmo ao se aferrar a
"um certo Marx" sem jamais dizer quais outros Marx nós
podemos deixar de lado (e por quê).
O tributo mais notável e inesperado que Derrida presta a Marx é
o seguinte: "Uma tal desconstrução 'do logocentrismo, da
metafísica da presença' teria sido impossível e impensável num
ambiente pré-marxista. A meu ver, o desconstrucionismo jamais teve
sentido ou interesse se não como uma radicalização do marxismo,
quer dizer, como parte da tradição de um certo marxismo, num certo
espírito do marxismo".
Reagi com ceticismo a essa passagem. Senti a tentação de dizer:
"Oh, veja bem, Derrida, você diz isso de todos os teus avós".
É claro que há uma linha em Marx da qual o antilogocentrismo de
Derrida é uma radicalização. Mas eu bem poderia achar linhas
semelhantes em Hegel, em Freud, em Platão, em Heidegger ou em
Rousseau. Eu bem poderia derivar o antilogocentrismo de qualquer uma
dessas linhas, assim como perceberia que o antilogocentrismo não
perde nada de sua relevância na ausência de uma ou outra delas
(ainda que não de todas). Um comentador de Derrida que isolasse um
desses pensadores como a fonte por excelência da tradição que
Derrida "impurifica" e radicaliza poderia produzir uma
interpretação perfeitamente plausível de sua obra -o mesmo valendo
para um outro comentador que, a partir da passagem que citei logo
acima, localizasse-o na tradição marxista.
O trecho sobre o desconstrucionismo como continuação do marxismo
por outros meios é, suspeito, um eco deliberado à passagem célebre
da "Crítica da Razão Dialética", de Sartre, sobre o
existencialismo como enclave dentro do marxismo. Parece-me que os
protestos de continuidade têm para Derrida a mesma função que a
passagem correspondente tinha para Sartre: ambas são uma tentativa
desesperada de provar que todo o conhecimento de grego e filosofia e
toda a familiaridade com a "hyle" são de fato úteis a um
objetivo público vital. Nós, pessoas sofisticadas, somos mesmo
úteis ao socialismo democrático, estamos a seu serviço não só
como cidadãos, mas por meio de nossas qualificações profissionais.
Há um sentido em que todos nós, antilogocentristas atualizados
(derridianos, deweyanos, ungerianos), somos fiéis à "11ª Tese
sobre Feuerbach". Não buscamos entender o mundo, ao menos não
no sentido aristotélico ou hegeliano de "entendimento", e
isso não porque o mundo nos pareça ininteligível, mas sim porque
encaramos cada redescrição do mundo como uma ferramenta de mudança
individual ou social, não como uma tentativa de capturar os traços
intrínsecos do real. Mas agora nossa escolha deve se dar entre mudar
o mundo ou mudar a nós mesmos. Se tomamos esta última via, como
fizeram Kierkegaard, Nietzsche e Proust, pareceremos egoístas,
inanes e decadentes. Envergonhamo-nos quando notamos o esforço
excessivo devotado a esse projeto puramente pessoal. Se por acaso
tivermos nascido na última geração de intelectuais franceses,
provavelmente acabaremos por escrever passagens sobre enclaves no
marxismo ou sobre um certo espírito em Marx. Se somos pragmatistas
americanos, começaremos por dizer que é importante inculcar nos
jovens um espírito antilogocentrista, com vista ao futuro das
sociedades democráticas e à realização dos ideais de John Dewey.
Espero sinceramente que as passagens citadas não sejam mostra de
uma mera auto-ilusão de Derrida. Elas deveriam ser lidas, no dizer
dele próprio, "dans un certain rire et dans un certain pas de
danse" (num certo riso e num certo passo de dança). Elas
deveriam ser acompanhadas de frequentes memorandos de que o tipo de
coisa que nós, filósofos, sabemos e o tipo de mudança nos modos de
pensar que nós podemos produzir podem bem vir a ter alguma utilidade
social, mas apenas a longo prazo e muito indiretamente. Não há
ciência da história, nem qualquer grande descoberta (da parte de
Marx ou de alguém mais) do contexto definitivo no qual localizar o
desemprego, a máfia, os mercadores da morte, o mercado de trabalho
globalizado e tudo o mais.
Contextos produzidos por teorias são ferramentas para a mudança.
Teorias que produzem novos contextos devem ser avaliadas por sua
eficiência em promover mudanças, não por sua adequação a um
objeto (como quereriam os logocentristas). Toda e qualquer ferramenta
é substituível tão logo se invente uma outra, menos desajeitada,
mais manejável ou portátil. A simples complicação em se tratar de
questões contemporâneas com uma problemática marxista é a razão
mais convincente para duvidar da necessidade de ler e reler Marx.
____________
* RORTY, Richard. Mistérios do além. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 03 dez. 1995. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/06/mais!/17.html>.
Acesso em: 25 jun. 2015.
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