Richard Rorty
A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em
que nada mudasse. Platão, fundador dessa área da cultura a que hoje
chamamos "filosofia", supunha que a diferença entre o
passado e o futuro seria mínima.
Foi só quando começaram a levar a história e o tempo a sério
que os filósofos colocaram suas esperanças quanto ao futuro deste
mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro
mundo.
A tentativa de levar o tempo a sério começou com Hegel, que
formulou detida e explicitamente suas dúvidas quanto à tentativa
platônica de escapar ao tempo e mesmo quanto ao esforço de Kant em
achar as condições a-históricas de possibilidade de fenômenos
temporais.
É claro que o idealismo de Hegel entrava em conflito com o
naturalismo de Darwin, mas mesmo assim Hegel e Darwin reforçavam um
ao outro. Sua influência conjunta distanciou a filosofia da questão
"O que somos?" e levou-a para "O que poderíamos vir a
ser?".
Enquanto Platão ou Kant esperavam observar a sociedade e a
cultura em que haviam vivido de um ponto de vista exterior, do ponto
de vista da verdade imutável, os filósofos dos últimos dois
séculos gradualmente abandonaram tais esperanças. Na medida em que
levamos o tempo a sério, nós, filósofos, temos que abandonar a
prioridade da contemplação sobre a ação.
Temos que concordar com Marx: nossa tarefa é tornar o futuro
diferente do passado, e não continuar afirmando que sabemos o que o
passado e o futuro têm em comum. Temos que deixar de lado o papel
que os filósofos vinham compartilhando com sacerdotes e sábios, em
nome de um papel social análogo ao do engenheiro e do advogado.
Enquanto sacerdotes e sábios podem decidir sobre suas agendas de
trabalho, os filósofos contemporâneos, como seus novos pares, devem
procurar saber de que precisam seus clientes.
Uma vez que Platão inventou a filosofia exatamente a fim de
escapar aos desejos transitórios e transcender a política, diz-se
que Hegel e Darwin teriam "desistido da filosofia" ou "dado
fim" a ela. Mas a filosofia simplesmente não pode acabar
enquanto houver mudança social e cultural.
Tais mudanças inevitavelmente tornam obsoletas antigas descrições
de nós mesmos e de nossa situação, criando assim a necessidade de
uma nova linguagem, capaz de formular novas descrições.
Só uma sociedade sem política -isto é, uma sociedade regida por
tiranos- poderia prescindir de filósofos. Em tais sociedades sem
política, os filósofos não poderiam ser mais que sacerdotes a
serviço da religião do Estado. Em sociedades livres, sempre haverá
demanda pelos serviços dos filósofos, pois sociedades assim não
cessam nunca de mudar, ou seja, de tornar obsoletos antigos
vocabulários.
Pensadores como Marx, Weber, Ortega e Dewey tomaram nota das
mudanças nas estruturas de poder que a Revolução Industrial
ocasionara e advertiram-nos quanto à obsolescência e à
insuficiência de nossos vocabulários tradicionais.
Dewey -filósofo que, como Marx, admirava Hegel e Darwin- sugeriu
que víssemos a filosofia como fruto de "um conflito entre
instituições de tendências incompatíveis": "Aquilo que
parece pretensiosamente irreal quando é formulado metafisicamente
torna-se intensamente significante quando conectado ao conflito entre
crenças e ideais sociais".
Qual é então a agenda de trabalho a que os filósofos e os
intelectuais de maneira geral devem atender neste final de século?
Quais velhas crenças e tradições estão ameaçadas pelos novos
desenvolvimentos culturais e sociais? De que precisam os clientes dos
filósofos?
Tal como entendo a situação, o começo do novo século proporá
o seguinte problema: os valores do Iluminismo -os valores que se
encarnaram com maior ou menor sucesso nas instituições das
democracias industriais- poderão sobreviver à derrocada da
nação-Estado como unidade socioeconômica, derrocada esta que é
uma consequência inevitável da globalização da economia?
Nos dois séculos posteriores à Revolução Francesa, as
democracias industrializadas fizeram progressos consideráveis rumo à
liberdade e à igualdade com que sonhavam os pensadores iluministas.
Mas esse progresso foi obtido isoladamente em cada país, atacando
problemas socioeconômicos com políticas localizadas. Não obstante,
social-democratas e marxistas sempre pensaram que a nação-Estado
deveria e acabaria por se extinguir.
Todos já imaginamos alguma vez uma comunidade cooperativa mundial
-o "Parlamento do Homem, a Federação Mundial!" de
Tennyson. Mas agora, quando a tecnologia finalmente tornou factível
a globalização integral, nenhum de nós é capaz de imaginar como
uma tal federação poderia existir, como um governo mundial poderia
de algum modo ser democrático.
O problema está em que as atuais desigualdades nos padrões de
vida não são compatíveis com uma organização política
genuinamente global e internacionalizada, que oferecesse a cidadãos
da Zâmbia, da Argentina, da Birmânia ou do Canadá as mesmas
oportunidades.
Uma tal política certamente seria apoiada pela maioria da
população mundial -os eleitores do Parlamento do Homem. Entretanto,
as diferenças hoje vigentes são tidas por naturais pela classe
média -a classe cuja existência e prosperidade são essenciais à
viabilidade do governo democrático- de todas as democracias
industriais.
Poucos membros da classe média argentina seriam bons cidadãos
-obedientes e dispostos a apertar os cintos- de uma Federação
Mundial dedicada a equalizar os padrões de vida na Argentina, Zâmbia
e Paquistão. Poucos membros da classe média canadense nem sequer
dariam ouvidos a uma proposta de nivelar as oportunidades
socioeconômicas no Canadá, em Portugal, no Usbequistão e na
Birmânia.
Mas também já não podemos esperar que as nações mais pobres
adiem alguns séculos suas exigências de maior igualdade. Elas podem
não querer esperar -e talvez não devam esperar- pela igualdade
global por via de uma gradual ascensão a altos padrões de vida, num
processo em que não haveria nivelamento ou perda de vantagens por
parte dos países ricos.
A diferença entre os 50 países mais pobres e os 12 mais ricos é
hoje tão grande quanto a diferença entre os muito pobres e a classe
média bem de vida na Espanha ou na Inglaterra dos primórdios da
Revolução Industrial.
O grito iluminista por justiça contribuiu para o surgimento, ao
longo dos últimos 200 anos, de uma dúzia de países em que não se
encontram tais contrastes terríveis entre miséria e afluência.
Mas são esses mesmos países que hoje não têm o menor interesse
em rebaixar seus níveis de vida em nome de uma globalização da
democracia.
Há boas razões para pensar que a globalização do mercado de
trabalho será seguida não pela globalização da democracia, mas
sim por uma quase insuportável pressão sobre as instituições
democráticas dos países mais ricos.
Quando a justiça entra em conflito com a lealdade, esta última
geralmente leva a melhor. Muitos de nós alimentamos e protegemos
nossas famílias antes de podermos pensar sobre as necessidades de
nossos vizinhos. Muitos de nós estamos muito mais interessados no
bem-estar de nossos compatriotas do que na situação das pessoas do
outro lado do mundo.
Mas os responsáveis pelas decisões econômicas que estão
globalizando o mundo -e dizendo aos trabalhadores dos países
industrializados que apertem os cintos a fim de competir com os
trabalhadores de Cingapura e de Taiwan- orgulham-se de estarem acima
das lealdades nacionais; declaram-se interessados na justiça em
escala global. Mas esse discurso soa como uma desculpa pela traição
a seus compatriotas, os trabalhadores cujos empregos estão sendo
exportados para o Sudeste Asiático.
Não sei como se resolverá esta nova forma de conflito entre
fracos e poderosos, isto é, o conflito entre os responsáveis pelas
decisões econômicas e aqueles à sua mercê. Mas é óbvio que este
conflito cria uma nova e incomensuravelmente maior fonte de tensão
entre nossas lealdades particularistas e nosso senso de justiça
universalista.
Gostaria que os intelectuais -e em especial os filósofos-
pudessem ser de alguma utilidade no tratamento deste conflito entre
valores tradicionais. Mas não estou certo de que os filósofos do
século 20 tenham muito com que nos ajudar.
O movimento filosófico mais original deste século deriva de
Nietzsche, e passa por Heidegger, Foucault e Derrida. Mas este
movimento é de pouca valia para pensar problemas sociais. Mesmo
Foucault, o que mais se aproxima de ser um pensador social, oferece
apenas ressentimento e desconfiança frente a tudo o que lhe pareça
uma usurpação de instituições sociais sobre a liberdade
individual, mas nunca formula propostas de reforma dessas
instituições.
Pensadores como Lyotard e Baudrillard tendem (como Heidegger antes
deles) a dar as costas ao Iluminismo. Apesar das construções
heróicas de Nietzsche e de seus seguidores, essa tradição tem
pouco que se compare ao que Dewey esperava da filosofia: ela é
incapaz de oferecer a espécie de redescrição e reconceitualização
de nossa situação histórica que Marx e Weber ofereceram a nossos
antepassados.
Ademais, a filosofia moral e política de pendor analítico e
kantiano, dominante nos países anglófonos, tem tradicionalmente
dado as costas Hegel, a Marx e à história. Ao contrário da
tradição nietzschiana, ela voltou-se para dentro, para longe das
necessidades sociais, dedicando sua atenção às necessidades do
indivíduo cultivado, à sua tentativa de transformar sua própria
vida numa obra de arte. Seus pronunciamentos têm sido a-históricos,
relegando às ciências sociais empíricas as questões relativas à
mudança social.
Não há porque esperar ajuda dessa tradição no que toca ao
problema justiça versus lealdade. Pois essa filosofia continua a
conceber a justiça como valor universal e transcendente, tratando a
lealdade como questão empírica, indigna de qualquer papel na
deliberação moral.
Mesmo assim, alguns filósofos contemporâneos lograram em grande
medida libertar-se de Kant sem voltarem-se para Nietzsche. Penso em
Jürgen Habermas na Alemanha, Charles Taylor no Canadá e Michael
Walzer nos EUA. Esses pensadores tentaram situar-se na tradição de
Hegel, Marx e Weber.
Nenhum deles é ou permanece marxista, mas todos concordam com
Dewey quanto à necessidade constante do que Marx fez por nós
-despertar-nos para a possível obsolescência dos vocabulários com
que levamos a cabo as deliberações morais e políticas ou
projetamos nossas visões utópicas.
Tanto quanto sei, os melhores livros recentes a respeito do
conflito entre justiça e lealdade são da autoria de Michael Walzer:
"Spheres of Justice", de dez anos atrás, e o novíssimo
"Thick and Thin". Este último é de especial importância
ao argumentar que o universalismo não é intrínseco à moral- ao
contrário do que afirma os kantianos.
Na concepção de Walzer, os códigos morais são sempre locais,
restritos e "densos". O universalismo "ralo" é,
por assim dizer, o creme que -com sorte e em circunstâncias
especialmente afortunadas- flutua sobre códigos morais locais e
particularistas; ele não é a raiz de onde brotam nossas percepções
morais. Walzer está na verdade repondo em circulação a grande
objeção de Hegel à ética de Kant: a obrigação universal de agir
dignamente frente a todos os homens não deixa lugar às fidelidades
particulares que formam nossa identidade moral -nossa fidelidade à
nossa cultura, ao nosso país, à nossa tradição histórica.
No próximo século, nossos filhos passarão por conflitos acerbos
entre sua lealdade às pessoas e sua obrigação de continuar a
trabalhar por uma utópica democracia global. É possível que muitos
intelectuais não venham a contribuir para a solução do problema,
mas filósofos como Walzer certamente serão mais úteis que muita
gente.
____________
* RORTY, Richard. Mistérios do além. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 03 dez. 1995. Traduzido por Samuel Titan Jr. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/03/mais!/10.html>.
Acesso em: 25 jun. 2015.
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