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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A habilidade natural*


Jurandir Freire Costa**

A edição em português dos "Escritos Filosóficos" de Richard Rorty é uma boa notícia para o leitor brasileiro. Rorty é um dos mais brilhantes filósofos americanos da atualidade. No terreno da subjetividade, seu trabalho abre horizontes extremamente interessantes. Embora sem tratar diretamente do assunto, as críticas que fez à doutrinas da filosofia analítica sobre a mente podem estender-se a inúmeras teorias psicológicas e a muitas tópicos da teoria psicanalítica.

Em linhas gerais, Rorty renova o interesse pelo pragmatismo de James e Dewey, sublinhando a concepção darwinista do sujeito e da linguagem. A evolução, diz ele, produziu criaturas falantes que utilizam marcas e sons articulados para receber discriminadamente estímulos ambientais e responder discriminadamente a estes estímulos. O sujeito é um dos efeitos desta habilidade natural que chamamos de linguagem. As consequências deste pressuposto são inúmeras.

Em primeiro lugar, o conhecimento deixa de ser imaginado como uma atividade representacional e a linguagem como um existente à parte, entre o cérebro e o resto da natureza. Entre o pensador e o que ele pensa não precisamos mais interpor um terceiro termo - mente, razão, linguagem, consciência ou qualquer outra entidade do mesmo tipo lógico - para explicar por que podemos representar falsa ou verdadeiramente "o que são as coisas em si".

Em vez de uma teoria "representacional", Rorty, apoiando-se fundamentalmente em Sellars, Quine e Davidson, propõe uma "teoria causal" do conhecimento. Conhecer não é "representar" alguma coisa para algo, pessoa ou função cognitiva. Conhecer é lidar com informações ambientais que afetam os organismos. Lidar significa alterar o estado de equilíbrio anterior à afetação, tendo ou não por finalidade a "adaptação", que é apenas um produto secundário da mutação ocasional do patrimônio genético ou da reação experimental do organismo vivo à exigências do meio. O conhecimento, portanto, é "causado" por esta constante interação organismo/meio, e o sujeito, um dos efeitos linguageiros desta interação.

Em segundo lugar, abandonando o "representacionalismo", abandona-se a pretensão de descrever a intrinsicalidade dos objetos investigados. As coisas, estados de coisas ou eventos são sempre percebidos e interpretados por comparação com outras coisas, estados de coisas e eventos.

Em vez de procurar saber "o que é intrínseco ou extrínseco" a tal fenômeno, pergunta-se qual o pano de fundo de crenças ou qual a rede de relações que tornou o fenômeno estudado um fenômeno relevante para a cultura do investigador. Ou seja, como Wittgenstein, Rorty não pergunta "o que torna algo idêntico a si mesmo em todas as circunstâncias lógica ou empiricamente possíveis", mas "que práticas linguísticas fazem-nos aceitar a identidade semântica do que consideramos um mesmo termo ou uma mesma coisa". Ou, pelo contrário, o que faz com que venhamos a notar diferenças e não semelhanças entre os objetos percebidos ou analisados.

Não existe algo que seja "a identidade" em abstrato e que nos faça "descobrir" a intrinsicalidade invariável do que definimos como idêntico a si mesmo, independente de contexto. Todo conhecimento do que julgamos saliente e importante conhecer é contextual e relacional. O sentido dos termos está no uso que fazemos deles, em contextos socioculturais.

Em terceiro lugar, descolando o sentido de termos, frases ou teorias de referentes fixos, ao modo do representacionalismo, o sujeito pensante ou intérprete dos fatos está liberado de compromissos com ontologias realistas ou universalistas. Sua tarefa não é mais a de conhecer cumulativamente ou aos saltos epistemológicos ou paradigmáticos a "realidade última" das evidências, mas a de imaginar que "background" de crenças permitiu assinalar tais referentes a tais palavras e, em seguida, afirmar que certas descrições "correspondem, refletem ou se adequam verdadeiramente" a tais ou quais pedaços linguísticos ou não-linguísticos do mundo.

Nem fisicalismo reducionista nem behaviorismo, a melhor definição para a hipótese rortyana da natureza do conhecimento e do agente que conhece é o "naturalismo pragmático", como sugere Bjorn Ramberg. Extrapolada para o domínio da subjetividade, esta tese implica a afirmação de que o sujeito não só é passível como exige várias descrições, todas elas logicamente válidas. A escolha de uma ou outra depende dos propósitos práticos que, em última instância, diz Rorty, são sempre ética ou moralmente normativos.

Podemos oferecer descrições do sujeito no vocabulário do mental, como podemos descrevê-lo fisicalisticamente. Mas estamos sempre optando por uma imagem moral prévia, enraizada nos hábitos linguísticos ordinários que orientam os propósitos do inquérito. Descrever o sujeito como "pessoa moral livre e autônoma", ou como um organismo biológico passível de controle experimental e interpretável em termos de leis nomológicas, é questão de estratégia intencionalmente dirigida para a afirmação de certas premissas éticas. Transcrito no idioma da psicologia leiga, o impacto é enorme. Muitos constituintes da subjetividade que aprendemos como "naturais, universais e imutáveis", perdem o caráter a-histórico.

A partir da leitura neopragmática, sentimentos, sensações, imagens ou outras figurações do que chamamos "natureza humana" mostram a dependência de crenças contextual ou historicamente construídas. Amor, paixão, sexo, fragilidade, potência, egoísmo, bondade, honra, glória, ganância, e assim por diante, são todos termos cuja história ou genealogia pode ser redescrita ou retraçada, em virtude de aspirações, necessidades ou sonhos presentes.

As chamadas "intuições indubitáveis" sobre "o que somos" nascem da participação numa cultura, num jogo de linguagem ou forma de vida que nos impõe, pela variação imprevista de experimentos morais e pela seleção retentiva de alguns destes experimentos, um modo contingente de lidar ou estar no mundo responsável pelas crenças que nos modelam.

A filosofia de Rorty, na clave da reflexão moral e não necessariamente no conteúdo de suas opiniões políticas, apresenta-se como um agir filosófico próximo da preocupação com as asceses individuais ou com a estilização de modos de viver tematizadas por Pierre Hadot, Peter Brown, Michel Vocault e outros. Na aproximação com a psicanálise, o naturalismo pragmático, desfazendo fronteiras tradicionais entre natureza/cultura, sujeito/objeto, aparência/realidade etc., evoca os momentos mais fortes do pensamento de Freud, Ferenczi, Balint, Bowlby e mais especificamente Winnicott, como mostraram Adam Philips e Alexander Newman.

Por outro lado, a ênfase dada por Rorty à performatividade da linguagem na constituição do sujeito -em particular, à função da metáfora não-significativa como produtora a posteriori de sentido - e à idéia de causalidade não-linguística dos atos de fala e do imaginário subjetivo parece confirmar algumas das mais criativas invenções teóricas de Lacan.

Em resumo, como notou Bento Prado Jr., com elegância, economia e grande inteligência, o maior valor do Rorty é o de mostrar a reinvenção de uma tradição em estilo próprio. Sem criacionismos fáceis ou fórmulas encantatórias, ele mostra que é possível pensar em liberdade, comprometido com o que é humanamente útil. Rorty não é um modelo a imitar. É um exemplo de honestidade, decência, coerência e grandeza intelectuais que vale a pena conhecer e avaliar, sem fraude nem favor.

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* COSTA, Jurandir Freire. A habilidade natural. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 out. 1997. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs121008.htm>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Jurandir Freire Costa é psicanalista e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Redescrições da Psicanálise" (1994) e "O Risco de cada um e outros ensaios de psicanálise e cultura" (2007).

Questão de fidelidade*


Paulo Ghiraldelli Jr.**

Junto com Alberto Tosi Rodrigues sou um dos responsáveis pelo fato de o livro "Achieving our Country -Leftist Thought in Twentieth-Century America" (Harvard, 1998) ter sido publicado no Brasil com o título "Para Realizar a América - O Pensamento de Esquerda no Século 20 na América" (DP&A, 1999). O professor Renato Janine Ribeiro fez uma generosa menção ao meu nome no comentário ao livro (Mais!, 27/2). Pelo que entendi, ele discorda da diferença que fiz, na "Introdução", entre pragmatismo e neopragmatismo (A) e, também, discorda do subtítulo, em especial porque permanece nele o nome "América" -penso que Janine Ribeiro gostaria mais que eu colocasse "Estados Unidos" em vez de "América" (B). De modo breve, tento justificar minhas opções. 

A - Pragmatismo versus neopragmatismo

Centrei minha "Introdução" no tema da verdade em associação ao tema do pós-modernismo. Disse que o deflacionismo no campo da verdade - a idéia de que a verdade não deve ser tratada de modo metafísico/epistemológico, mas sim de modo semântico- corresponde, no âmbito do pós-modernismo, à descrença nas metanarrativas (Lyotard), uma espécie de "deflacionismo" ideológico e político. Ora, todo esse debate só tem sentido no campo neopragmático, pois no campo propriamente dos velhos pragmatistas (era pré-Quine e pré-Davidson) tudo isso não era tratado nos moldes da filosofia analítica. 

B - "Estados Unidos" versus "América"

O tipo de esquerda que Rorty defende deveria ter um papel específico, a saber: sempre lembrar as pessoas de que, quando os imigrantes vieram, eles vieram para "fazer a América". E o que era a "América" de que eles falavam? Ela era o sonho de liberdade, de tolerância política e religiosa, de crescimento de estilos de vida diferentes, de aumento da igualdade econômica e crescimento da riqueza cultural e moral -tudo o que fosse o contrário dos males do Velho Continente.

Rorty acha que a esquerda deve ser a consciência que chama a atenção de todos para essa "América", que está por ser realizada. Para Rorty, o sonho americano não morreu, até porque sua realização é tardia: só com o século 20 ele de fato começa: com o "New Deal", o movimento dos direitos civis, o feminismo, a campanha pelos direitos humanos etc. O livro é sobre a realização da "América", não dos "Estados Unidos".

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* GHIRALDELLI JR., Paulo. Pragmatismo samaritano. Folhã de S. Paulo, São Paulo, 26 mar. 2000. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2603200011.htm>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA). Dentre outros livros, publicou "Richard Rorty - a filosofia do novo mundo em busca de mundos novos" (1999) e "Ensaios pragmatistas - sobre subjetividade e verdade" (2006), este último em conjunto com Rorty.

Entrevista - Sou do contra*


Jurandir Freire Costa**
Luiz Eduardo Soares***

"A esquerda americana deveria tentar se lembrar de outras coisas que a Guerra do Vietnã", afirma Richard Rorty na entrevista a seguir, em que fala sobre o antiamericanismo dos intelectuais norte-americanos, a política das minorias nos EUA e a psicanálise. A entrevista foi concedida pelo filósofo aos professores Luiz Eduardo Soares e Jurandir Freire Costa, no Rio de Janeiro, no ano passado, e permaneceu inédita até hoje.

Na ocasião, o filósofo participava da conferência internacional sobre "Pluralismo Cultural, Identidade e Globalização", coordenada por Luiz Eduardo Soares e Candido Mendes de Almeida, com o apoio da Unesco. As conferências apresentadas no encontro foram reunidas em um livro com o mesmo título, que está sendo lançado nesta semana em edição não-comercial, em inglês, pela editora do Complexo Universitário Candido Mendes e Unesco.

Jurandir Freire Costa - Num artigo sobre o livro de Marcia Cavell "The Psychoanalytic Mind - From Freud to Philosophy", o sr. afirmou que deveríamos poder chegar a definir o sujeito de maneira bastante econômica como uma rede neural, de um lado, e, de outro, como uma rede linguística. É uma idéia que o sr. já havia defendido em escritos anteriores. Ou seja, se bem entendi, o sr. defende a idéia de que, se nos libertarmos da imagem do "teatro cartesiano", poderíamos dispensar a psicologia e guardar apenas a neurologia e a "folkpsychology" (psicologia popular). Esta ainda é sua atual impressão? Psicologia, psicanálise etc. estão destinadas a perder a importância que têm tido pelo menos desde o século 19?

Rorty - Diria que Freud ampliou a "folkpsychology" e não que ele criou uma nova ciência. A "folkpsychology" ampliou-se muito no curso dos séculos porque temos mais ilustrações, mais analogias. Podemos dizer isto de outro modo. Entre os intelectuais, não entre o povo, podemos falar de "momentos proustianos", "conversações jamesianas", "momentos de felicidade stendhalianos" etc. Tudo isso faz parte da "folkpsychology". Freud nos deu de um só golpe um enorme tesouro de analogias, de frases, de imagens, e com isso enriqueceu nosso vocabulário de descrição de nós mesmos, como certos romancistas. Eu diria que a "folkpsychology" não é exatamente "folk", mas também não é uma ciência.

Freire Costa - Com a expressão "não é exatamente "folk" o sr. quer dizer que não é popular?

Rorty - Sim. Entre nós, nos EUA, existem leitores que escrevem cartas aos jornais a propósito de questões pessoais. Existe uma senhora que lhes responde. As respostas são frequentemente muito boas. Quero dizer que, hoje, as respostas que encontramos nestas páginas seriam impossíveis sem Freud. Mas com isso não quero dizer que as respostas são simplesmente dadas "no jargão de Freud". É o pensamento de Freud mesmo que encontramos nelas! Poderíamos chamar isso de "folkpsychology". 

Eu creio que isso se aplica mesmo para Lacan. Assisti a uma conferência de Zizek, com muitos exemplos de cinema, de romances policiais etc. Pois bem, mesmo uma pessoa como eu, que não entendo quase nada de Lacan, pude compreender algumas frases como "o objeto sublime do desejo". Ou seja, trata-se de uma ampliação do conhecimento de nós mesmos. Eu não diria que Lacan descobriu uma grande verdade sobre a condição humana. Lacan, simplesmente, deu-nos, em minha opinião, uma outra perspectiva sobre nós, mas ainda uma perspectiva.

Freire Costa - O sr. quer dizer uma outra descrição?

Rorty - A meu ver, a psicanálise forma um contínuo com a literatura. Não é um assunto para ser estudado; é um assunto sobre o qual se escrevem bons livros que devem ser lidos.

Freire Costa - O que é que o sr. pensa da política da identidade? É uma boa ou uma má idéia?

Rorty - Em inglês temos a expressão "grupos de interesse". Os trabalhadores, as mulheres, os médicos, os professores etc. podem formar grupos de interesse. Subitamente, criamos a expressão "política de identidade". Eu penso que isso é uma mistificação. Naturalmente nós temos grupos de interesse. Mas identidade? Minha questão é: qual é minha verdadeira identidade? Homem? Professor? Branco? Eu penso que essa é uma questão que não merece ser posta!

Freire Costa - Não faz sentido querer fixar identidades?

Rorty - Se somos membros de um grupo oprimido, temos uma identidade como membro de um grupo oprimido. Se somos negros, se somos homossexuais e, por isso, quiserem bater-nos, então devemos protestar, devemos dizer: "Não! Não se pode bater em negros ou homossexuais". Mas saber o que é exatamente um homossexual ou, então, o que é exatamente a identidade negra, é uma questão para filósofos e não uma questão política. Eu sou membro da Associação Americana de Professores Universitários. Nós somos um grupo de interesse, quer dizer, temos leis que existem para nós. Mas não existe algo como "uma identidade profissional de professor".

Freire Costa - Quando se pergunta "o que é uma identidade?", o sr. acha que existe a tendência a buscar-se um referente imutável da "identidade"?

Rorty - Sim. Creio que na questão da política de identidade há sempre uma divisão entre essencialistas e antiessencialistas. Os essencialistas querem dar definições; os antiessencialistas dizem: "Não! O problema é muito complexo para que se possa definir, trata-se de um jogo infinito de diferenças etc.". Eu acho tudo isso tedioso. Existe uma batalha estéril entre aristotélicos e derrideanos (de Jacques Derrida). Eu não sei o que fazer com isso. Para divertir-nos, podemos escrever coisas deste tipo: o que é um professor, o que é uma mulher etc. Mas, falando politicamente, nada disso é sério.

Freire Costa - Mas o sr. não acha que, em discussões deste tipo, tentativas de descrever fatos de uma outra forma têm algum valor? Por exemplo, lembro de um texto de Stephen Jay Gould em que ele diz que a noção de raça é extremamente discutível em biologia ou zoologia. Ou seja, por que continuamos guardando esta noção aplicada aos humanos, quando muitos já a abandonaram no estudo do reino animal? O sr. não acha que vale a pena discutir coisas como esta, dizendo que isso não faz sentido?

Rorty - Sim, mas acho que é mais importante descrever, por exemplo, as particularidades da vida de um homem negro, de uma mulher pobre etc. É verdade que num nível mais abstrato podemos fazer redescrições. Isso talvez possa ser útil. Mas o que considero verdadeiramente útil é descrever os indivíduos em termos novos, imaginativos, e não de maneira abstrata. Nos últimos anos, temos uma literatura homossexual enorme, o que é bem mais útil do que a "Psychopathia Sexualis" (de Kraft-Ebing) ou mesmo do que as teorias de Freud sobre o assunto.

Luiz Eduardo Soares - A impressão que o sr. tem a respeito de seus colegas, os filósofos profissionais, foi um fator que pesou em sua decisão de abandonar os departamentos de filosofia e se transferir para as ciências humanas?

Rorty - Essas decisões sempre são um pouco pessoais, as relações pessoais que se tem com os colegas entram em jogo. Eu não estava me dando muito bem com meus colegas, estava lá havia 20 anos. Eles estavam entediados comigo, e eu com eles. Isso também era mau para meus alunos. Nos Estados Unidos, se um estudante escreve uma dissertação sobre Heidegger, é um escândalo. Então os alunos diziam: "Posso escrever sobre Heidegger?". Claro, mas meus colegas não vão gostar. Isso criava situações difíceis. O tipo de estudante que eu gosto é aquele que lê de maneira onívora, que lê de tudo, então é esse o tipo de estudante que eu atraio, mas não é uma recomendação geral.

Soares - Seu texto vem se tornando cada vez mais direto, seco, simples, é claro que não menos complexo, mas mais simples. Dá a impressão de ser uma decisão deliberada, um projeto, como se o sr. precisasse de uma certa estética do escrever para estabelecer um palco ou para dramatizar, para possibilitar também uma maneira de pensar ou talvez de comunicar, e minha impressão é que se torna muito evidente a qualquer um que o lê mais atentamente que isso parece constituir um diálogo íntimo e não dito com a filosofia francesa, na qual a retórica é tão importante.

Rorty - Isso ocorre porque existe muita imitação dos franceses entre meus colegas dos departamentos de literatura. As pessoas para as quais eu escrevo nos EUA tendem a ter lido Derrida e Lacan e escrevem numa espécie de imitação francesa, e, assim, para irritá-las, escrevo de maneira tão diferente da francesa quanto possível. Você sabe o que é "do contra" - alguém que faz tudo do jeito oposto. Eu sou do contra. Se todo mundo está fazendo de um jeito, sempre vou tentar fazer de algum jeito diferente. Eu simplesmente gosto de efeitos verbais.

Soares - Qual o escritor de sua preferência?

Rorty - Aqueles sobre os quais escrevi: Proust, Nabokov, Henry James. Mas também tenho livros favoritos que já li e reli muitas vezes. Acho que todo mundo tem livros assim. Não é que sejam grandes livros ou que você aprenda alguma coisa com eles, você os ama, apenas, então os relê muitas vezes.

Soares - Por exemplo?

Rorty - Há um escritor inglês, Max Beerbohm, que escreveu um livro chamado "Zuleika Dobson". Publicado em 1912, é um romance muito engraçado, um romance de humor. Acho que é um dos livros mais engraçados que já li na vida. Eu o releio a toda hora. Falo a meus alunos sobre o livro, e eles não entendem a graça. O livro não quer dizer nada para eles.

Soares - Tenho ouvido reações indignadas contra suas considerações e relações a respeito do patriotismo. O modo como o sr. expressa sua relação, sua admiração pelos Estados Unidos. Essas reações vêm de intelectuais que também são norte-americanos.

Rorty - Tínhamos uma esquerda patriótica nos EUA até a Guerra do Vietnã. Ou seja, as pessoas de esquerda nos EUA achavam que os EUA eram um grande país, que poderíamos recuperar os bons velhos tempos de Lincoln e Wilson. Depois veio a Guerra do Vietnã e de repente os intelectuais de esquerda norte-americanos disseram que o país não prestava, que eles tinham sido enganados. A esquerda norte-americana ainda acha que os EUA são um país terrível. Mas é claro que os cidadãos não acham que sejam um país terrível, ainda acham que é um grande país. Então meu argumento é que a esquerda nos EUA deveria tentar se lembrar de alguma coisa além do Vietnã.

Ela deveria parar de dizer que este é o país que oprimiu os negros, que matou os vietnamitas, que este é o país racista, o país sexista. Praticamente todos os países são imperialistas, racistas e sexistas e, comparado a outros países, este é OK. Em meu artigo "Intellectuals in the Fore", em que há várias páginas sobre o antiamericanismo, o que procuro argumentar é que a esquerda adotou essa política da identidade, na qual se considera que devemos abandonar a idéia do Grande Sonho Americano como se fosse ilusão. Quero dizer que é melhor não o abandonarmos, pois é tudo que temos. É o único meio de comunicação existente entre a esquerda e o público.

Soares - Admitiria políticas defensivas, como a ação afirmativa?

Rorty - Claro.

Soares - É favorável à manutenção da política de ação afirmativa?

Rorty - Não por ser um reconhecimento de identidade, mas porque, se tivermos ação afirmativa, este país será mais simpático.

Soares - O sr. não acha que o feminismo, enquanto movimento, nasceu fora desse contexto? Ou ele teria vindo dentro dele?

Rorty - Não, houve o que chamam de feminismo de primeira onda, em 1920, a questão do sufrágio, e ninguém achava que era uma questão de identidade, era uma questão de direitos. Depois o feminismo de segunda onda se dividiu entre pessoas que diziam "direitos" e as pessoas que diziam "identidade", porque haviam lido francês. Os americanos, na minha opinião, falam demais sobre direitos. Mas, entre direitos e identidade, é melhor falar sobre direitos. É melhor dizer simplesmente "é injusto" do que dizer "minha identidade não está sendo reconhecida". Acho que a identidade virou objeto de fetiche. Os intelectuais nos EUA passam 90% de seu tempo falando sobre identidade, isso não tem ligação com uma disciplina política, é uma espécie de preocupação estética.

Soares - Como o sr. avalia o cenário político atual?

Rorty - Acho que os republicanos são completamente corruptos, no sentido em que simplesmente trabalham em prol dos ricos. São completamente cínicos. Não existe pretensão de fazer nada exceto deixar os ricos ainda mais ricos. Acho que entre os democratas ainda há algumas pessoas que se preocupam com o país. Acho que pessoas como Clinton e Bradley são homens decentes e inteligentes. Não há candidatos republicanos interessantes. Dole é um homem inteligente e completamente destituído de escrúpulos.

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* COSTA, Jurandir Freire, SOARES, Luiz Eduardo. Sou do contra. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 out. 1997. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs121010.htm>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Jurandir Freire Costa é psicanalista e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Redescrições da Psicanálise" (1994) e "O Risco de cada um e outros ensaios de psicanálise e cultura" (2007).

*** Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Elite da Tropa" (2008) e "Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo" (2011).

Um mestre iconoclasta*


Richard Rorty

A morte, em junho último, de Thomas Samuel Kuhn, o mais influente filósofo de língua inglesa desde a Segunda Guerra Mundial, foi ocasião de muitos obituários extensos e respeitosos. Muitos deles referiam-se a ele antes como historiador da ciência que como filósofo. Kuhn não teria feito objeções a essa descrição, que entretanto é enganadora.

Se tivesse escrito um obituário, não teria deixado de chamar Kuhn de filósofo, e por duas razões. Em primeiro lugar, creio ser este o termo mais apropriado para alguém que remapeia a cultura, isto é, sugere um modo original e promissor de pensar a relação entre vários setores da atividade humana. A grande contribuição de Kuhn foi a de indicar uma nova direção, cujo impacto sobre a auto-imagem de várias disciplinas foi enorme.

Minha segunda razão é o ressentimento pelo fato de Kuhn ter sido constantemente tratado por meus colegas filósofos como, na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda classe na comunidade filosófica, quando não como um intruso que não tinha por que se meter com uma disciplina para a qual não tinha a formação adequada. Não creio que se deva fazer grande caso da distinção filósofo/não-filósofo, e de modo algum quero torná-la mais aguda. Mas sempre achei irritante que pessoas que usavam o título de "filósofo" como honraria quando falavam de si próprias e de seus amigos se julgassem no direito de não concedê-lo a Kuhn.

Kuhn foi um dos meus ídolos, porque a leitura de "A Estrutura das Revoluções Científicas" (1962) -no Brasil, publicado pela Perspectiva - proporcionou-me a sensação de uma súbita revelação. O fato de ele abordar problemas filosóficos por assim dizer "pela lateral" - tendo-se doutorado em física antes de se tornar historiador autodidata da ciência do século 17 - não me parecia razão suficiente para excluí-lo de nossas fileiras. A principal razão pela qual Kuhn foi mantido à distância pelos professores de filosofia está no domínio que a tradição da filosofia "analítica" exerceu no mundo acadêmico anglófono. Essa era uma tradição que se orgulhava de ter trazido a filosofia para mais perto da ciência - logo, para mais longe da literatura.

A última coisa que os filósofos dessa tradição queriam ver abalado era o caráter distintivo da ciência; assim, não estavam prontos para ouvir de Kuhn que o sucesso da ciência não se deve à aplicação de um "método científico" específico, e ainda que a substituição de uma teoria científica por outra não é algo que dependa apenas da lógica fria e precisa, sendo antes análoga ao processo de substituição de uma instituição política por outra.

A grande contribuição de Kuhn ao remapeamento da cultura reside em ter-nos feito ver que os cientistas naturais não têm uma via de acesso privilegiado à realidade e à verdade. Ele ajudou a desmontar a hierarquia tradicional de disciplinas, uma hierarquia que remonta à imagem platônica da reta do conhecimento.

Nessa hierarquia, a matemática (que usa lógica pura, sem nenhum elemento de retórica) está no alto, enquanto a crítica literária e a persuasão política (que usam muita retórica e nenhuma lógica) estão na posição mais baixa. Kuhn dissolveu a distinção entre lógica e retórica ao mostrar que mudanças revolucionárias na ciência dependem menos de seguir uma linha de inferências que de mudar a terminologia em que as hipóteses concorrentes são formuladas (assim reformulando igualmente os critérios de relevância). Kuhn ajudou assim a romper com a idéia de "cânones do raciocínio científico" que Aristóteles, ao contrário de Galileu, supostamente não teria observado.

Por essa via, ele ajudou a tornar obsoleta a questão de "como trazer nossa disciplina para o caminho seguro da ciência?". Kant propusera essa questão no domínio da filosofia; Husserl e Russell tinham respostas divergentes; B.F. Skinner pedia aos psicólogos que se restringissem a um vocabulário de noções como "estímulo", "resposta", "condicionamento" e "reforço"; e Northrop Frye sugerira uma taxonomia dos mitos, uma série de escaninhos que os críticos literários do futuro cuidariam de preencher.

É claro que tornar obsoleta uma tal questão não era tarefa para um homem só. Kuhn tinha atrás de si uma série de autocríticas da filosofia analítica, da parte do último Wittgenstein, Quine, Sellars, Goodman e outros -autocríticas que eram um dos principais tópicos de discussão no período (1955-1965) que viu a publicação de "A Estrutura das Revoluções Científicas".

Todos esses filósofos autocríticos haviam, em sua juventude, aceito a sugestão russelliana de que "a lógica é a essência da filosofia", bem como sua visão de filosofia como análise de noções complexas rumo a seus elementos mais simples. Mas, num certo momento, todos se tornaram céticos quanto à existência de uma "lógica" que os guiaria ao longo de uma tal análise, bem como quanto à existência de elementos simples que constituiriam o resultado final da análise. Os candidatos de Russell a essa função -os dados da experiência sensorial, as idéias claras e distintas de "e", "não" e "se-então", que formam o vocabulário da lógica simbólica elementar- já não pareciam satisfatórios. Goodman mostrou que o próprio ideal de simplicidade é apenas uma entre várias opções de descrição.

Sellars, à maneira de Kuhn, mostrou que não há maneira a priori de selecionar, em nossas experiências sensoriais, aquilo que é "dado à mente" e aquilo que é "adicionado pela mente". Wittgenstein perguntou-se "Por que pensávamos que a lógica fosse algo de sublime?". Quine e Goodman, tomando apoio em Skinner, mostravam que talvez fosse melhor entender a lógica como um padrão de comportamento humano e não como uma força imaterial a moldar esse comportamento.

Ninguém jamais pensou que tais críticos do que Quine chamava de "dogmas do empirismo" -aquelas doutrinas que Russell e Carnap tinham por evidentes- não fossem filósofos. Pois nenhum deles ameaçava a auto-estima profissional ou o hábito da autocongratulação que fazia com que todo filósofo analítico desse graças a Deus por ter nascido na época certa -uma época em que a filosofia tornara-se clara, rigorosa e científica. Mas Kuhn punha a perigo essa auto-estima, pois a leitura de seu livro fez muito filósofo analítico pensar se a noção de "clareza científica" era afinal tão clara, rigorosa e científica quanto supunham.

Também começava a duvidar que a lógica simbólica trouxesse algo mais que elegância estilística à prosa dos filósofos analíticos; também já não sabia se a clareza e o rigor de que tanto nos orgulhávamos era algo mais que uma certa preferência por responder a algumas questões e por ignorar outras. Tanto quanto era capaz de perceber, o que nos fazia "analíticos" não tinha nada a ver com um método de "análise conceitual" ou de "investigação da forma lógica". O que nos unia era o fato de levarmos a sério algumas doutrinas propostas por Carnap e Russell a ponto de querermos refutá-las.

A noção de história da ciência proposta por Kuhn -a saber, a história das "matrizes disciplinares" na história da ciência- foi de grande ajuda para mim quando tentei formular esse diagnóstico da filosofia analítica. O mesmo vale para sua noção de paradigma. Depois de ler a "Estrutura", comecei a entender a filosofia analítica como uma maneira entre outras de fazer filosofia, e não mais como a descoberta de como assestar a filosofia de uma vez por todas no caminho seguro da ciência. Isso levou a certa irritabilidade no convívio com os meus colegas, a maioria dos quais pensava que Kuhn não fizera muito mais que mostrar que certos pontos da visão de Carnap de uma "lógica da ciência" necessitavam de algumas correções menores; esses colegas pareciam não ver qualquer implicação metafilosófica na obra de Kuhn.

Comecei a pensar que Carnap e Russell haviam sugerido uma certa versão de filosofia, tal como Aristóteles, Locke e Kant haviam feito. Cada um destes havia criado uma matriz disciplinar e, por essa via, uma tradição filosófica -uma tradição de pessoas que levava a sério a terminologia e a argumentação dos mestres. Nessa visão kuhniana, Carnap e Russell haviam estabelecido um modelo do que deveria ser a filosofia, enquanto a "filosofia analítica" dedicava-se a testar a utilidade desse modelo. O modelo podia mostrar-se profícuo, tal como podia mostrar ser apenas uma maneira de requentar velhas controvérsias filosóficas num novo jargão. Só o tempo diria. Mas não havia razão a priori para pensar que a lógica simbólica ou o "rigor-e-clareza" valeriam a pena. Não havia razão para pensar que o modelo positivista de filosofia fosse mais científico ou mais rigoroso que o modelo de Hegel, Husserl ou Heidegger.

Não estou querendo dizer que Kuhn demonstrou o vazio da noção de "cientificidade". Tal como outras idéias vagas e estimulantes, também esta pode ser preenchida e concretizada de várias maneiras. Uma delas consiste em inquirir se uma disciplina pode produzir previsões precisas, de modo a poder ser aplicada à engenharia ou a qualquer outro propósito prático. A mecânica de Galileu era ótima nisso, ao contrário da aristotélica. A medicina antes de Harvey oferecia menos previsões confirmáveis que depois de Harvey.

Mas Kuhn ajudou-nos a perceber que não há sentido em tentar explicar um maior sucesso preditivo afirmando, por exemplo, que Galileu e Harvey eram "mais científicos" que Aristóteles e Galeno. Ao mostrarem que somos capazes de fazer mais previsões do que pensávamos, esses dois homens contribuíram para alterar o sentido de "ciência" de modo que "ser capaz de fazer previsões úteis" passou a ser um critério de "cientificidade" mais importante do que fora antes.

É claro que essa maneira de determinar o conteúdo da noção de cientificidade não é de qualquer utilidade quando se passa à filosofia. Os filósofos jamais foram bons em predições. Assim, para propósitos metafilosóficos, o critério de cientificidade tem que ser a capacidade de conquistar a concordância entre os pesquisadores. A razão pela qual os admiradores da física têm desconfiança diante da crítica literária deriva da ausência de consenso quanto à interpretação correta de um texto: parece que, de algum modo, qualquer um pode dizer o que bem entender a respeito do significado do texto e ainda assim ser levado a sério como crítico. No extremo oposto, os matemáticos em geral são unânimes quanto à validade de um teorema. Os físicos estão mais próximos dos matemáticos, enquanto os cientistas sociais estão mais para o lado da crítica literária.

O problema é que a concordância intersubjetiva sobre quem teve êxito e quem fracassou só é fácil de determinar se os critérios de sucesso são dados de antemão. Se tudo o que se deseja é o alívio rápido da dor, a opção por um analgésico é natural (ainda que a vitória possa ter efeitos colaterais indesejáveis e tardios). Se o que se quer da ciência é apenas a capacidade de previsão, há um modo fácil de decidir entre duas ou mais teorias (ainda que esse critério devesse levar, num certo momento histórico, à adoção da astronomia ptolemaica, de preferência à copernicana).

Se tudo o que se quer é demonstração rigorosa, nada mais fácil que checar as provas dos teoremas matemáticos e entregar os louros a quem tiver mais teoremas aprovados (ainda que o prêmio acabe por ir para algum trapaceiro, autor de teoremas irrelevantes). Mas a concordância intersubjetiva fica mais difícil de atingir tão logo os critérios de sucesso comecem a proliferar ou a ser questionados.

A leitura de Kuhn levou-me a pensar que, em vez de mapear a cultura com uma régua hierárquica epistêmico-ontológica, encimada pelas categorias de "lógico", "objetivo" e "científico", deveríamos antes tentar mapear a cultura por meio de um espectro sociológico indo da esquerda caótica -em que os critérios estão sempre em mutação- à direita conformista -em que eles estão, ao menos por algum tempo, firmemente estabelecidos.

Pensar nos termos de um tal espectro possibilita perceber o movimento de uma dada disciplina rumo à esquerda nos períodos revolucionários e rumo à direita nos períodos estáveis e monótonos -que Kuhn chamava de períodos de "ciência normal".

No século 15, quando quase toda a filosofia era escolástica e quase toda a física era aristotélica, ambas as disciplinas estavam bem à direita. No século 17, ambas estavam bastante à esquerda, enquanto a crítica literária estava muito mais à direita do que estaria depois do movimento romântico. No século 19, a física se estabelecera e rumara à direita, coisa que também a filosofia tentava desesperadamente fazer. Mas esta última acabaria por se cindir em tradições separadas, cada qual reclamando para si o título de filosofia "genuína", a partir de critérios próprios de sucesso profissional. Sob este aspecto -falta de consenso internacional sobre o que é válido ou inválido-, a filosofia está muito mais próxima da crítica literária que de qualquer ciência natural.

Essa nova visão sociológica da relação entre as disciplinas fez com que muita gente pensasse em termos mais relaxados sobre seus próprios métodos de pesquisa ou sobre o produto -ciência ou opinião?- de seus esforços profissionais. Desde que começaram a ler Kuhn, os sociólogos começaram a aceitar mais facilmente a grandeza intelectual de Weber e Marx, a despeito de não terem tido acesso aos métodos contemporâneos de análise estatística. Isso por sua vez lhes permite reconhecer que sociólogos contemporâneos que se abstêm de usar estatísticas - David Riesman ou Paul Starr, por exemplo - podem ser admitidos como praticantes honrados de seu ofício. Tomemos um outro exemplo: desde que leram a "Estrutura", os psicólogos parecem menos ansiosos por saber se a psicologia freudiana é tão "cientificamente respeitável" quanto as experiências de Skinner com pombos.

A essa altura, todas as ciências sociais passaram por um processo de "kuhnização", marcado por uma maior disponibilidade para admitir que não há um modelo único de pesquisa relevante num dado setor da cultura. Tais critérios mudaram no curso da história e continuarão a mudar. Ainda que a filosofia tenha até certo ponto se mantido à parte desse processo, creio haver também aí uma maior disponibilidade em historicizar as questões -isto é, em conceder que não há qualquer divisor de águas que nos permita separar o "sentido" do "não-sentido", em admitir que mesmo Hegel ou Heidegger podem ter feito algo de filosoficamente relevante.

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* RORTY, Richard. Um mestre iconoclasta. Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 out. 1996. Tradução de Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/06/mais!/17.html>. Acesso em: 02 fev. 2015.

Resenha - Pragmatismo samaritano*


Paulo Ghiraldelli Jr.**

Os anos 60 e os 70 do século 20 foram a época de apogeu do "fim da religião" entre os jovens. A década de 90 viu a religião voltar para a vida da juventude. Filósofos como o religioso Gianni Vattimo e o anticlerical Richard Rorty, que tiveram diálogos reunidos pelo teólogo Santiago Zabala no "The Future of Religion", estão atentos ao aumento do número de fiéis. Eles se preocupam com a saída da religião da esfera privada e seu possível retorno para a esfera pública.

Para ambos, o problema que vivemos não é o das pessoas adotarem ou não religiões, mas sim o das pessoas levarem o dogmatismo quase que inerente à religião para fora do campo íntimo. Isso seria um complicador da vida democrática. No entanto ambos enxergam o mundo ocidental como um mundo melhor após a adoção do cristianismo como guia para comportamentos morais -uma disposição para a justiça calcada no amor ao próximo em vez de regrada pela idéia de "dente por dente e olho por olho".

Mas como manter a idéia de que a moral cristã - uma moral religiosa, afinal - colabora com a nossa prosperidade e, ao mesmo tempo, lhe negar qualquer legitimidade se, para tal, for necessário dizer que ela é expressão da verdade?

Rorty e Vattimo podem ser tomados dizendo: a religião só perde e só nos faz mal saindo do campo da intimidade. Ela não ganha nada, e nós bem menos, se quiser se tornar um conhecimento objetivo, algo com a pretensão de espelhar "a realidade como ela é". Todavia a religião como vivência, em especial o cristianismo, pode colocar a idéia e a prática da "lei do amor" como válida por meio das histórias morais que pode contar. O Novo Testamento traz um bom número dessas histórias. Elas não se tornam menos importantes se tomadas como ficção. Nem se tornam mais convincentes se validadas como verídicas por historiadores.

Penso que o que Rorty e Vattimo poderiam endossar é o uso pragmático do Novo Testamento. Por exemplo, se quero falar para os jovens da tolerância e da solidariedade entre etnias, o melhor não seria recolocar a conversa de Jesus sobre o samaritano? Os samaritanos eram pessoas consideradas como péssimos exemplos a serem seguidos, segundo a crença da época. Quando Jesus foi questionado sobre como levar a vida segundo seus ensinamentos, ele, com sua ironia peculiar, apontou para o comportamento do samaritano que ajudou um desconhecido, após este ter sido assaltado.


Veracidade irrelevante


A idéia de Jesus é clara: mostrar que o pertencimento a um ou outro povo é secundário, ser de uma ou outra raça é irrelevante, o prioritário é agir de modo desprendido por amor, por solidariedade, corajosamente. Essa história de Jesus era verdadeira? Tanto faz! E a própria história de Jesus ter contado tal história é verdadeira? Tanto faz! A moral nela contida e seu ensinamento são válidos para nossa conduta independentemente disso. Aliás, muitos que se dizem cristãos nem mais se importam em saber se na hóstia consagrada há alguma divindade ou não. A prática do samaritano é o que vale.

A mesma idéia pode servir em uma centena de outros exemplos do Novo Testamento. No caso do perdão à prostituta, na situação de não lavar as mãos à mesa, na dúvida de Jesus sobre Deus quando na Cruz etc. Todas as facetas humanas de Jesus são as que importam para colocarmos na jogada novos vocabulários de deliberação moral capazes de nos levar a um outro mundo: nessas conversas, a palavra "justiça" se desassocia das palavras "vingança" e "reparação" para se tornar amiga das palavras "perdão", "solidariedade" e "amor". Essa nova associação entre palavras muda falas e atos e assim faz sem ter de responder se há verdade ou não nos discursos em que aparecem.

Essa religião de um "Jesus pragmatista" é o que entendo que vem no mesmo sentido da "abertura" da filosofia em relação à religião que, em nossos tempos, é uma abertura da filosofia em relação a uma boa parte da juventude. Os diálogos do anticlerical Rorty e do religioso Vattimo estão nesse caminho. Este é um bom livro, que valeria a pena ser traduzido.


The Future of Religion
112 págs., US$ 24 - R$ 57 de Gianni Vattimo, Richard Rorty e Santiago Zabala. Columbia University Press (EUA)
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na Fnac (tel. 0/ xx/11/4501-3000) ou no site www.amazon.com

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* GHIRALDELLI JR., Paulo. Pragmatismo samaritano. Folhã de S. Paulo, São Paulo, 03 jul. 2005. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0307200513.htm>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA). Dentre outros livros, publicou "Richard Rorty - a filosofia do novo mundo em busca de mundos novos" (1999) e "Ensaios pragmatistas - sobre subjetividade e verdade" (2006), este último em conjunto com Rorty.

Um brinde fora do lugar*


Jurandir Freire Costa**

Por intermédio de Flávio Pinheiro, tive acesso ao texto de Richard Rorty sobre "A Rebelião das Elites", de Christopher Lasch. Um resumo do livro apareceu na Folha há pouco tempo. Rorty critica Lasch e propõe dois brindes às elites, a título de provocação intelectual.

A crítica apóia-se em dois principais argumentos. Primeiro, Lasch seria um passadista empedernido e uma analista político de um olho só. Atacar cegamente as elites é sinal de obtusidade. Num mundo economicamente globalizado, pensar numa sociedade sem especialistas ou numa gerência de negócios comunitária e democratizada é derrisório.

Lasch, afirma Rorty, agride o desenvolvimento político e tecnológico norte-americanos, como se nada de bom tivesse surgido do avanço das ciências e da luta pelo progresso social. Seu mundo ideal é uma fantasia fabricada pelo marxismo amaciado, tão ao gosto dos radicais dos anos 60.

Sem as diabólicas elites de Lasch, pergunta Rorty, em que pé estariam, por exemplo, as lutas pelos direitos civis das minorias, a campanha contra a guerra do Vietnã etc? Lasch, ironiza Rorty, "é melhor lamentando perdas do que fazendo o balanço de perdas e ganhos; e imaginando desastres do que propondo saídas". Na hora das soluções, o analista radical fica em silêncio. É fácil ser romanticamente revolucionário, quando não se tem o ônus de responsabilidades concretas.

Segundo, Lasch aspiraria por uma ordem político-econômica feita do improvável e não do possível. Em vez de experimentar, limita-se a desconstruir, deixando no lugar, à maneira de Heidegger, "desespero, e não consolo". Dividir o mundo entre massas e elites, condenando ambas em nome de uma utopia proletária nunca vista, em nada resolve os problemas que enfrentamos.

Melhor seria seguir os conselhos de Harold Bloom e Gore Vidal, que se contentam com "um razoável governo democrático" e com a chance de realizar nossos anseios privados na terra e não no paraíso pós-revolução.

Rorty é um dos maiores pensadores da atualidade. Seu compromisso com os ideais humanitários das democracias liberais é, a meu ver, inequívoco. Mas "nobody is perfect", dizia Billy Wilder. A miopia diagnosticada em Lasch às vezes o atinge sem que ele se dê conta.

Ao contrário do ditado, guarda o bebê e a água suja, e ninguém de bom senso gostaria de ressuscitar o "american way of life" antes do Vietnã. Neste aspecto, Rorty tem razão. Mas até aí só temos meia história. O fundamental do trabalho é a constatação de que as novas elites são indiferentes ao bem comum. Rorty insiste em desconhecer isto. Quando se trata de analisar a economia capitalista, passa rápido ou faz vista grossa.

É ou não escandaloso notar que 20% dos norte-americanos, hoje, concentram 50% da riqueza do país mais rico do mundo? Isto reflete os ideais de Jefferson, Bloom ou outros autores tão citados por Rorty? Do mesmo modo, quando defende a sociedade de especialistas, o que tem Rorty a dizer sobre os parasitas especuladores do mundo inteiro, que vêm acumulando fortunas gigantescas às custas da miséria de milhões de pessoas e centenas de países pobres no planeta? Isto é experimento eticamente pragmático ou canalhice, violência e crime lesa-democracia, quando não lesa-humanidade!

Tem mais. Como bem sintetizou David Hall, em sua narrativa pragmática, Rorty elege o "ironista liberal", o "poeta forte" e o "revolucionário utópico" como ideais de conduta ética do sujeito face às contingências do mundo. Rortyanamente, pergunto, o que têm a ver estes heróis com os comportamentos e os jargões politicamente corretos dos movimentos de minorias que ele costuma dar como exemplo da responsabilidade social das elites?

Basta assistir "Oleanna", de David Mamet, ou ler a reportagem de Eliana e Contardo Calligaris, publicada recentemente neste Mais!, para ver a distância que separa aquelas condutas morais robotizadas dos ideais wittgensteinianos e nietzscheanos que alimentaram o pensamento de Rorty. Em que tais estereótipos humanos distinguem-se dos rebanhos de "idiotas dominantes", para usar a expressão desabusada de Feyerabend? Como ver progresso moral em indivíduos que repetem bovinamente que "são aquilo que seu grupo é" e que só abrem a boca para exprimir "as necessidades, anseios e aspirações do grupo"?

O que de poético ou heróico existe no empacotamento de indivíduos em rótulos de "feministas", "velhos", "negros", "homossexuais", "sadomasoquistas" etc? Onde encontrar, nesta obsessão pelas pequenas diferenças narcísicas, o mundo de todos e para todos, imaginado pelos pais do "poema americano", que Rorty tanto admira? Neste sentido, Lasch vai além. Não se sente responsável pelo conserto das mazelas do que não criou e que sempre condenou.

É difícil ir de encontro a quem admiramos e devemos muito de nossas crenças morais e intelectuais. Mas esta é uma das consequências do pragmatismo. Nenhum vocabulário é imortal. Tudo pode ser reescrito à luz dos princípios éticos que aceitamos. Isto aprendi com o grande pensador Richard Rorty. Seu brinde, lamento, veio fora de tempo e lugar. Foi feito antes da catástrofe da tequila.

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* COSTA, Jurandir Freire. Um brinde fora do lugar. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 mar. 1995. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/3/12/mais!/25.html>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Jurandir Freire Costa é psicanalista e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Redescrições da Psicanálise" (1994) e "O Risco de cada um e outros ensaios de psicanálise e cultura" (2007).

Rorty e a psicanálise*


Jurandir Freire Costa**

Richard Rorty é um dos mais notáveis pensadores da atualidade. A leitura neopragmática que faz da filosofia da linguagem, da filosofia da mente, da teoria do conhecimento, da filosofia moral etc, é ousada, nova e admiravelmente inventiva. Por isso, abre um horizonte intelectual que vai muito além das disciplinas investigadas.

Exemplo típico é o caso da psicanálise. Rorty nunca tomou explicitamente a psicanálise como objeto de estudo. Entretanto, alguns de seus trabalhos (por exemplo, "Contingence, Irony and Solidarity", "Freud and Moral Reflexion", "Non-reductive Physicalism" etc.) renovam, de modo inédito e surpreendente, noções psicanalíticas como a do sujeito na relação com a linguagem e a verdade.

Para Rorty, o que denominamos sujeito não é um dado pré-existente aos elementos linguísticos constitutivos de sua descrição. O "sujeito", o "eu" ou o "self" são um efeito de linguagem. Mas linguagem, aqui, não equivale à competência abstrata para produzir falas particulares, como em Chomsky, ou à estrutura formal de todas as falas possíveis, como em Saussure.

Na tradição pragmática de Wittgenstein, Austin, Quine e Davidson, linguagem é simplesmente o conjunto de atos de fala empregados pelos usuários competentes de uma língua. O que distingue o sujeito enquanto rede linguística de outros efeitos de linguagem, sem referência a estados ou processos subjetivos, é o fato de ser pensado como "a parte da rede de crenças e desejos postulada como causa interior do comportamento linguístico de um organismo singular". Em outros termos, o eu é a fração da linguagem entendida como aquilo que é causa ou que está na origem da linguagem.

As consequências desta afirmação são inúmeras. Em primeiro lugar, o sujeito é despojado de todo suporte "essencial", idealista ou realista. Nem corpo, nem conceito; nem sensível, nem inteligível; nem superficial, nem profundo, o sujeito é uma "realidade linguística" – realidade psíquica, disse Freud. E por ser linguística, depende de contextos historicamente contingentes.

Assim sendo, nenhuma identidade subjetiva – emocional, intelectual, sexual etc – é "natural" ou "universal". Nossas crenças sobre o que é normal ou anormal, natural e antinatural nas condutas humanas não designam uma "realidade extra-linguística" anterior ou heterogênea à linguagem; exibem opções e preferências morais da cultura a que pertencemos. Em segundo lugar, o sujeito descrito desta forma não possui centro ou núcleo verdadeiro, nem estrutural nem histórico.

Flexionando pragmaticamente a teoria semântica da verdade de Quine e Davidson, Rorty afirma que "verdadeiro é aquilo que é aprovado num sistema de crenças válido para a maioria dos fatos na maioria dos casos". Dito de outra maneira, verdadeira é a descrição do sujeito que satisfaça as exigências morais do certo e do errado, do bom e do mau, numa dada forma de vida.

No neopragmatismo, portanto, o fundamental, em Freud, não é a descoberta de explicações causais deterministas e supostamente científicas do que sentimos, pensamos e fazemos: é a construção da imagem do sujeito como um retecer permanente de crenças e desejos que cessa, provisoriamente, quando um dado estado de satisfação moral é obtido.

Na clínica como na vida podemos desejar alterar estados subjetivos por diversos motivos. Porém, quando alcançamos a alteração desejada, e ela é satisfatória, "nada mais é preciso, nada mais é possível", como disse Davidson.

O critério da satisfação moral é, deste modo, decisivo no julgamento que fazemos sobre a "normalidade" ou "anormalidade" das organizações psíquicas, bem como sobre o sucesso ou insucesso do processo psicanalítico. Qualquer outro critério pretensamente fundado em argumentos racionais independentes de práticas culturais específicas pressupõe, sem tornar claro, o acordo em torno de crenças éticas compartilhadas na linguagem ordinária. É o adeus prosaico, wittgensteiniano, dado por Rorty à metafísica da falta, do desejo ou do verdadeiro sujeito, contida em tantas versões da psicanálise.

A meu ver, sua interpretação neopragmática do sujeito restitui a força original do pensamento freudiano. Ou seja, primeiro a escuta solidária das existências individuais em conflito com os vocabulários morais dominantes; depois as metapsicologias.

Estas serão sempre bem vindas, desde que não pretendam aposentar precocemente vidas e desejos em "pequenas nosologias" e "pequenas teorias". Fazendo filosofia, Rorty fez o que de melhor pode ser feito em psicanálise: entender Freud. É um autor de gênio, comprometido com o humanamente digno. Pode haver maior elogio? 

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* COSTA, Jurandir Freire. Rorty e a psicanálise. Folha de S. Paulo, São Paulo, 08 mai. 1994. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/5/08/mais!/9.html>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Jurandir Freire Costa é psicanalista e escritor. Autor de diversos livros, entre eles "Redescrições da Psicanálise" (1994) e "O Risco de cada um e outros ensaios de psicanálise e cultura" (2007).

O fedor de Heidegger*


Richard Rorty

No mundo Real Heidegger foi nazista, covardemente hipócrita e ainda assim o maior pensador europeu do nosso tempo.

As recentes tentativas de rejeitar Heidegger como "filósofo nazista" assemelham-se às tentativas nazitas de rejeitar a teoria da relatividade de Einstein como "física judaica". Em ambos os casos, pede-se que confrontemos um corpo de pensamento, nao a outros corpos de pensamento, mas a algo de mais facilmente acessível - nossas intuiçoes morais. Se você estiver de antemao convencido de que a própria noçao de relatividade é fruto da decadência cultural, terá fugido ao esforço de, primeiro, atravessar um sem-número de equaçoes, para só entao decidir se os fenômenos físicos podem ser explicados de modo nao-relativístico. Se você estiver certo de que as próprias idéias de "experiência autêntica" ou de "nostalgia pela voz do Ser" sao inerentemente fascistas, ter-se-á poupado o trabalho de comparar a versao heideggeriana da história da filosofia ocidental às versoes de Hegel, Dewey, Popper e Blumenberg, entre outros; isso para nao falar das etimologias fantasiosas e dos neologismos idiossincráticos do autor alemao. E, afora tudo isso, você estará livre para deixar de lado os livros daqueles que se deixaram influenciar por Heidegger - Derrida, De Man, Foucault -, incluindo-os sob a rubrica de tralha desacreditada.

O próprio Heidegger era mestre nesse tipo de rejeiçao apressada. Tal como Nietzsche, que dizia ter um olfato capaz de lhe dizer se um livro era digno de reflexao, Heidegger arrogava-se a capacidade de farejar o "autêntico" e o "primordial". Heidegger pôs de lado todos os esforços por alcançar mais felicidade humana ou por proporcionar oportunidades iguais para um maior número de pessoas como meros sintomas de "humanismo", outros tantos signos de nosso "esquecimento do Ser". De modo que, quando os Nazistas subiram ao poder, Heidegger não se sentiu obrigado a comparar suas propostas com as dos partidos católicos ou social-democratas, a se perguntar qual espécie de futuro a Alemanha poderia esperar do regime nazista, a matutar se não seria melhor continuar a viver dentro dos limites do Tratado de Versalhes, a perceber o dano que a demissão de professores judeus causaria às universidades alemas. Os nazistas cheiravam-lhe bem; havia algo de autêntico ao seu redor.

Graças ao livro de Hugo Ott, sabemos agora que a busca heideggeriana pela autenticidade andou mesclada a uma boa dose de ambição pessoal. Sabemos também que, quando foi chamado a prestar contas, ele mentiu descaradamente. Mas os juízos políticos equivocados, a ambição e a hipocrisia covarde - e mesmo, creio eu, a profunda antipatia pela democracia - não nos incomodariam tanto, não fosse pelo silêncio de Heidegger face ao destino dos judeus europeus. Muitos dentre nós estamos prontos a desconsiderar a vaidade, a altaneria e os negócios escusos de pensadores e escritores originais (aquele tipo de coisa que recheia livros como Intellectuals, de Paul Johnson) com o fito de perguntar: "Apesar de tudo, o que podemos aprender desses sujeitos? O que eles podem fazer por nós? O que podemos tirar deles?" Esta seria a atitude corrente em torno a Heidegger, não fosse por seu silêncio sobre o Holocausto, por sua recusa em sequer reconhecer sua existência. É como se de repente descobríssemos que certos poemas, originais e fantásticos, foram redigidos por um torturador em seus momentos de folga. Desse momento em diante, haveria um certo mau odor a rondar esses poemas.

Não obstante, creio que deveríamos tampar nossos narizes, separar a vida da obra e adotar face aos livros de Heidegger a mesma atitude que assumimos para com outros autores. Deveríamos confrontá-los, não às nossas intuições morais, mas a outros livros. Não é todo dia que se encontra uma história original da filosofia no Ocidente, tal como não é fácil dar com um livro original sobre os movimentos celestes ou a estrutura da matéria. Uma perspectiva original sobre a nossa tradição filosófica deve tentar explicar porque usamos as palavras tal como o fazemos e, por essa via, porque nos ocorrem as intuições morais que temos. Não podemos nos dar ao luxo de desprezar tentativas dessa natureza. Só deveríamos fazê-lo se tivéssemos por nossos narizes a mesma confiança egomaníaca que Nietzsche e Heidegger nutriam pelos seus. Talvez essa espécie de fé seja condição necessária para a produção de obras de gênio; mas nós, que não o somos e que nos consideramos tolerantes e abertos, faríamos melhor em nos livrarmos dessa fé.

Creio que será mais fácil separar a vida e a obra de um autor na medida em que concebamos o caráter moral - nosso ou alheio - como variável independente do curso dos nossos talentos. Vale aqui recordar uma lição freudiana: o caráter moral de um indivíduo (seu grau de sensibilidade ao sofrimento alheio) é moldado por eventos aleatórios ao longo de sua vida. Com freqüência, e talvez mesmo habitualmente, a sensibilidade varia independentemente dos projetos de auto-criação que o indivíduo leva a cabo em sua obra intelectual.

Tentarei esclarecer o que quero dizer por "eventos aleatórios" e "variação independente" por meio do esboço de um mundo possível ligeiramente diferente - um mundo em que Heidegger une-se a Thomas Mann, seu companheiro de anti-igualitarismo, na resistência anti-hitlerista. A fim de visualizar melhor como esse outro mundo possível poderia ter sido real, imagine que, no verão de 1930, Heidegger subitamente se apaixona perdidamente por uma aluna de filosofia, uma moça bonita, vibrante e adorável, de nome Sarah Mandelbaum. Sarah é judia, mas Heidegger, tonto de paixão, mal se apercebe. Em 1932, após um doloroso divórcio de Elfride, sua primeira esposa - processo que lhe custa a amizade do casal Husserl, entre outros -, Heidegger casa-se com Sarah. Em janeiro de 1933, nasce o primeiro filho, Abraham.

Em tom de brincadeira, Heidegger diz a Sarah que o filho não recebeu o nome em homenagem ao patriarca bíblico, mas sim em honra a Abraham à Santa Clara, o único outro filho de Messkirch a se dar bem na vida. Sarah vai à biblioteca examinar os escritos anti-semitas de Abraham à Santa Clara, e a piadinha de Heidegger torna-se pretexto para a primeira briga séria do casal. Pelo final de 1933, Heidegger já não faz piadas do mesmo teor: Sarah faz-lhe ver que os funcionários judeus - inclusive seu sogro - foram demitidos. Heidegger lê artigos a seu próprio respeito no jornal dos estudantes; percebe que seus dias estão contados. Pouco a pouco ele se dá conta de que seu amor por Sarah custou-lhe muito prestígio, e mais cedo ou mais tarde lhe custará o emprego.

Mas ele ainda a ama, e acaba por abandonar suas montanhas natais por causa dela. Em 1935, Heidegger está lecionando em Berna, mas tao-somente como professor visitante. Todas as cátedras de filosofia na Suíça estão ocupadas. É quando chega um convite do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton. Heidegger passa dois anos aperfeiçoando lenta e trabalhosamente seus conhecimentos de inglês, suspirando por uma sala de aula repleta de alunos atentos e devotados. A chance aparece em 1937, quando alguns de seus colegas emigrados conseguem-lhe um emprego permanente na Universidade de Chicago.

É lá que Heidegger conhece Elizabeth Mann Borgese, que por sua vez o apresenta a seu pai. Heidegger acaba por superar sua desconfiança inicial frente ao filho-do-papai hanseático, e Mann supera sua desconfiança inicial face ao filho de roceiro da Floresta Negra. Ambos percebem que compartilham - e ainda com Adorno e Horkheimer - uma visão dos Estados Unidos como reductio ad absurdum das esperanças iluministas, como terra sem cultura. Mas seu desprezo pelos EUA nao os impede de enxergar Hitler como ruína da Alemanha e, futuramente, da Europa.. Os empolgantes discursos radiofônicos anti-hitleristas de Heidegger permitem-lhe gratificar sua necessidade de oferecer uma auto-imagem heróica às massas humanas - a mesma necessidade que, noutras circunstâncias, ele poderia ter gratificado por meio de um discurso de posse como reitor.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o casamento de Heidegger está em destroços. Sarah Heidegger é uma social-democrata engajada, adora os EUA e é uma sionista apaixonada. Com o passar dos anos, veio a encarar seu marido como um grande homem, de coração frio e impermeável, um coração que, anos antes, abriu-se para ela mas que permanece fechado a seus anseios sociais. Despreza o egoísta na mesma medida em que admira o filósofo e o polemista anti-nazi. Separam-se em 1947, e ela segue para a Palestina junto com Abraham, que agora conta 14 anos. É ferida na guerra civil mas, após a independência, acaba por se tornar professora de filosofia na universidade de Tel-Aviv.

Heidegger retorna triunfalmente a Freiburg em 1948. Ele ajuda seu velho amigo Gadamer a conseguir um emprego, apesar de seu ácido desprezo pela aquiescência deste quando da investida nazista sobre as universidades alemãs. Casa-se pela terceira vez, agora com uma viúva de guerra, mulher que faz seus amigos lembrarem de Elfride. Quando morre em 1976, sua esposa deposita em seu caixão a Medalha Presidencial da Liberdade, a medalha da ordem Pour le Mérite, e a medalha dourada do Prêmio Nobel de Literatura. Este último fora-lhe concedido um ano depois da publicação da breve mas pungente elegia para Abraham, morto nas Colinas de Golan em 1967.

Que livros Heidegger terá escrito nesse outro mundo possível? Quase exatamente os mesmos que escreveu no mundo real. Conta a mesma história sobre a perda gradual da abertura primordial para o Ser ao longo do caminho que leva de Parmênides a Nietzsche. No outro mundo, entretanto, sua Introdução à Metafísica inclui uma identificação desdenhosa do movimento nacional-socialista ao niilismo inconseqüente da tecnologia moderna, assim como a observação de que Hitler está arrastando a Alemanha para o mesmo nível metafísico da Rússia e dos EUA. Seus seminários sobre Nietzsche são basicamente os mesmos, exceção feita a uma longa digressão sobre o horror de Nietzsche ao anti-semitismo, digressão que, aliás, representa um convergência surpreendente com um escrito contemporâneo e independente de Sartre, o Retrato do Anti-Semita.

Nesse outro mundo, Heidegger escreve quase todos os ensaios que conhecemos, além de interpretações de trechos de Thoreau e Jefferson, redigidos por ocasião de conferências em Harvard e na Universidade da Virgínia, respectivamente. Essas conferências transferem o pathos de suas pastorais ambientadas na Floresta Negra para o Monte Monadnock e a Serra Azul da Virgínia. Em suma: nesse mundo, seus livros são documentos do mesmo esforço que presenciamos no mundo real: o esforço por escapar à tradição filosófica ocidental e assim "cantar uma nova canção". Esse ímpeto pessoal rumo à pureza e à originalidade, essa tentativa de ver o Ocidente de uma perspectiva nova e radicalmente diversa constituiu o cerne de sua vida. Um ímpeto que não se deixou desviar pelo amor por uma outra pessoa ou pelo engajamento nos acontecimentos políticos do seu tempo.

Em nosso mundo, Heidegger não fez qualquer declaração política depois da guerra. No mundo possível que estou esboçando, ele investiu seu prestígio como anti-nazista na tarefa de tornar respeitável a direita alemã. É adorado por Franz Joseph Strauss, que lhe faz visitas respeitosas em Todtnauberg. Social-democratas como Habermas lamentam que Heidegger se encontre repetidamente no lado errado da política alemã; por vezes, em conversas privadas, dão vazão à suspeita de que, sob circunstâncias ligeiramente diferentes, Heidegger teria sido um nazista dos bons. Mas jamais sonhariam em afirmar publicamente uma coisa assim, ainda mais a respeito do maior pensador europeu do nosso tempo.

Em nosso mundo, Heidegger foi nazista, covardemente hipócrita, e ainda assim o maior pensador europeu do nosso tempo. Naquele outro mundo possível, ele tem a sorte de dar de cara com o tormento dos judeus europeus, o que acabou por despertar seus sentimentos de piedade e vergonha. Nesse mundo, ele teve a sorte de não ter podido tornar-se nazista, livrando-se assim de alguns convites à hipocrisia e à covardia. No mundo real, ele deu as costas aos fatos e acabou por recorrer à negação histérica, que por sua vez acarretou seu silêncio indesculpável. Mas a negação e o silêncio nao dizem muito sobre os livros que escreveu - e vice-versa. Em ambos os mundos, o único liame entre suas posições políticas e seus livros está em seu desprezo pela democracia, compartilhado aliás com gente como Eliot, Waugh e Paul Claudel - gente que (tal como previu Auden) acabamos por perdoar em vista dos grandes livros que escreveram. Poderíamos, do mesmo modo, ter perdoado a Heidegger seu desprezo pela democracia, se isso fosse tudo. Mas neste mundo sem Sarah, neste mundo em que Heidegger teve o azar de viver, havia muito mais em jogo.

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* RORTY, Richard. O fedor de Heidegger. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 abr. 1997. Tradução de Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/20/mais!/15.html>. Acesso em: 02 fev. 2015.

Resenha - A transformação da filosofia*


Paulo Eduardo Arantes**

Como o famigerado influxo externo - o mesmo de que falava Machado de Assis a propósito das idas e vindas de escolas literárias européias e demais panacéias científico-sociais prestigiosas - não só continua preponderante mas parece estar ingressando numa fase aguda de excitação nestes tempos de desmanche nacional acelerado, é muito provável que a tradução brasileira do principal livro de Richard Rorty, "A Filosofia e o Espelho da Natureza", mesmo atrasada de 15 anos, desencadeie um novo surto de conversões fulminantes, desta vez ao neopragmatismo americano. É que, ao lado de uma velha amiga da casa, a Ideologia Francesa da Transgressão e assemelhados, regularmente fustigada no seu flanco (direito? esquerdo?) pelo ameno cosmopolitismo ético da Teoria (alemã) da Ação Comunicativa, a Alta Conversação, prática social sucedânea da enferrujada investigação filosófica dos fundamentos, preconizada por Richard Rorty para coroar em grande estilo a era de Esclarecimento absoluto em que já vivem as prósperas democracias industrializadas do Atlântico Norte - como nosso Autor prefere se exprimir, não por cinismo, mas com certeza por considerar que é assim mesmo, sem rebuços essencialistas, que deve falar um nominalista consequente -, representa sem dúvida uma excelente ocasião para sacudir a poeira do atraso e do dogmatismo, como nos conclamam insistentemente a fazê-lo nas altas esferas da República, sobretudo nesta hora decisiva em que também o país intelectual procura seu lugar na nova divisão internacional do trabalho.

Não será demais lembrar de saída que estas três vias alternativas de ajuste filosófico às exigências da conjuntura mundial (por ser variante da primeira, deixei de mencionar uma quarta, a Desconstrução americana, de longe a mais forte no atual mercado ideológico) não são necessariamente incompatíveis, admitindo até uma ampla gama de combinações, como poderá verificar sem dificuldade qualquer observador do divertido "pas de trois" que elas costumam executar pelos quatro cantos do campus global. Neste gênero muito característico de coreografia, seja dito também de passagem, Rorty enxergou mais longe e saiu na frente: por exemplo, ao arbitrar com a desenvoltura dos vencedores um verdadeiro "tête-à-tête" de gigantes como a querela em que no início dos anos 80 se envolveram Habermas e Lyotard (mas poderia ser Foucault, é claro) a respeito do caráter inconcluso ou não do assim chamado Projeto Moderno, dando razão alternadamente ora a um, ora a outro. No que andou certo, uma vez que, para um pragmatista que se preze, diferenças teóricas são diferenças sobre coisa nenhuma, e quanto ao mais, ao que verdadeiramente importa, somos todos europeus que se deram bem neste fim de século, aliás por mera contingência, pois o devir é inocente, como de resto poderia demonstrar muito bem qualquer nietzschiano parisiense.

Sendo o ecletismo sabidamente nossa paixão metodológica predominante, está claro que esta oportuna liga de bastidores entre estilos rivais de adaptação ao novo curso do mundo joga a nosso favor. Estaríamos assim tão autorizados como qualquer um de nossos parceiros metropolitanos a costurar sem maior cerimônia, digamos, a rejeição do mito da sociedade transparente (como diria um ideólogo francês em guerra com o todo), na etérea ancoragem do poder político no tecido argumentativo da sociedade (na visão moral do mundo dos neo-iluministas alemães), sem esquecer de arrematar tal figurino brandindo o estandarte da intimidade (não há transformação da filosofia sem concomitante transformação da intimidade), devidamente articulada na pluralidade democrática de suas vozes (como poderia fazê-lo algum prolixo ideólogo americano do Self infinitamente maleável, de acordo aliás com qualquer manual de auto-ajuda).

Além do mais, mudando de manual, um bom livro-texto sobre tendências filosóficas contemporâneas se encarregaria, por sua vez, de assegurar que a feliz circunstância dessa convergência é muito natural, que ela se deve em última instância ao mesmo paradigma da linguagem compartilhado pelo pós-estruturalismo, pela nova teoria crítica e pelas várias correntes pós-analíticas, que o referido linguistic turn de última geração deixou bem longe para trás, no quarto de despejo das relíquias metafísicas, os conceitos enfáticos de razão substantiva e verdade-correspondência, sujeito autocentrado e conhecimento-como-representação ou busca-de-certeza etc., e que doravante o que cabe discutir (não se faz outra coisa nas últimas duas décadas) se resume à determinação do rumo específico a tomar a partir daquela momentosa virada (que um discípulo alemão de Habermas, não resistindo ao entusiasmo inspirado pelo novo panorama que se descortinava, chegou a considerar a mais significativa conquista teórica do século 20 filosófico), se na direção de uma pragmática (da linguagem), de uma política (da linguagem), de uma poética (da linguagem), e assim por diante. A transformação da filosofia patrocinada por Rorty tomou esta última direção.

Trata-se de um livro híbrido em mais de um aspecto. Acresce que redigido por um respeitável egresso do movimento analítico, porém sem a menor intenção de oferecer qualquer contribuição positiva acerca dos assuntos obrigatórios na corporação: nenhuma solução alternativa para o problema mente-corpo, idem para as inumeráveis teorias da referência ou do dualismo esquema-conteúdo etc. São questões terminais, e os falsos dilemas que suscitam, imagens sem futuro que se desmancham no ar. Não sendo em absoluto construtivo, além do mais parasitando as variantes teóricas que vai solapando, são evidentes suas simpatias desconstrucionistas. Mas a perspectiva é sobretudo terapêutica (à maneira do segundo Wittgenstein, é claro), embora fortemente realçada pelo tempero do historicismo europeu, cuja aclimatação todavia não teria sido possível sem a colaboração do momento pós-positivista da tradição analítica, inaugurado em princípio pelos primeiros ataques de Quine à tradição da "filosofia primeira", prolongados mais adiante por Davidson, Sellars, Kuhn etc.

Deu-se então um miraculoso recobrimento, manifesto por exemplo na ironia involuntária com que a gesticulação subversiva da desconstrução se resolve pacificamente num quadro de normalidade clínica. No centro desta reviravolta civilizacional, como era de se esperar, Wittgenstein II, só que agora também desempenhando o papel de desconstrutor mor de metáforas e arquétipos na origem de nossas mais arcaicas e arraigadas convicções filosóficas, como a da linguagem-espelho-da-realidade. Sendo pelo contrário a linguagem um mero instrumento, como sabe muito bem qualquer usuário sem fumaças especulativas, fica desobstruída a rota iluminista da desconstrução, que remontará primeiro à mítica essência vítrea de nossa mente. Desfeito o encantamento desta imagem primordial, desmorona o tabu moderno subsequente, incrustado na idéia igualmente regressiva de uma transação regulada a priori entre um sujeito cognoscente e a assim chamada realidade, marcha triunfal que culminará com a "morte da significação" (Ian Hacking), pá de cal definitiva no propósito hoje velho de um século de converter a linguagem num tópico transcendental. Assim, o Ocidente tremeu nas bases, um abalo que de tão profundamente irreversível quase passou desapercebido, deixando tudo na mesma, como atesta, entre outras mutações radicais, o pacato funcionamento enfim desenfeitiçado da linguagem ordinária.

Um terremoto deste porte deixou várias vítimas fatais. Para abreviar, vou logo à mais saliente: a noção moderna de filosofia enquanto tribunal da razão pura, última instância encarregada de fundamentar toda e qualquer pretensão de conhecimento ou certeza, e por aí autorizada, entre tantas outras atribuições de um verdadeiro e único guardião da racionalidade, a pedir contas às demais esferas da cultura na base do conhecimento prévio das suas respectivas fundações. Visto no entanto de um ângulo mais auspicioso, devemos reconhecer nesta convulsão o trauma de nascença de uma outra cultura, agora sim totalmente esclarecida, uma cultura pós-filosófica, finalmente aliviada do fardo filistino de fornecer razões, como se o conhecimento justificado fosse uma relação especial (de espelhamento) entre as palavras e as coisas.

Aqui então a virada linguístico-pragmática propriamente dita (que não deve ser confundida com o linguistic turn de primeira geração, dos tempos da semântica clássica do início do século), a revelação de que o assim chamado conhecimento é uma prática muito especial, no fundo uma questão de "conversação", sendo toda justificação uma "justificação conversacional", de sorte que compreendemos o conhecimento quando compreendemos a justificação social da convicção. Já dá para notar, entre tantas outras consequências do pragmatismo, que o mencionado abalo sísmico na cultura do Ocidente abriu uma fenda intransponível (sem maiores dramas, contudo, apenas outro indício da nova normalidade) entre verdade e justificação.

Cultura pós-filosófica então é isto: curado, graças a uma terapia adequada, o desejo infantil de contato objetivo, neutro e imediato, com a realidade tal como ela é, a maioridade intelectual do sujeito pós-filosófico, liberado da carga ansiosa cristalizada em formações reativas tais como ``a teoria verdadeira", "a coisa correta a fazer", se apresenta na alma leve de quem se sente muito à vontade por não precisar mais sustentar opiniões, por estar apenas dizendo alguma coisa sem o encargo arcaizante de dizer como realmente ela é. Assim pelo menos deveria se conduzir o cidadão esclarecido e cosmopolita das democracias afluentes do Atlântico Norte, a última encarnação do "honnête homme", alguém polidamente empenhado em não deixar uma conversa degenerar em... seminário, numa procura platônica qualquer da verdade. Um minuto de desatenção - por motivo de recaída nessa primitiva fixação profissional -, seria o suficiente para provocar um pequeno colapso mundano, demonstração cabal de falta de tacto da parte de quem pretende encerrar uma conversação ao invés de prolongá-la indefinidamente, como seria do dever de um verdadeiro homem do mundo. Compreendamos então o tamanho de nossa gafe, caso exigíssemos de um Wittgenstein, o grande herói da cultura pós-filosófica, que possuísse opiniões sobre o modo como as coisas são: uma exigência de inequívoco mau gosto, sobretudo por colocar o referido herói numa posição perigosamente ridícula.

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* ARANTES, Paulo Eduardo. A transformação da filosofia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 mai. 1995. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/5/01/caderno_especial/5.html>. Acesso em: 02 fev. 2015.

** Paulo Eduardo Arantes e filósofo e professor aposentado da USP.