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domingo, 1 de fevereiro de 2015

A nova cruzada americana*


Richard Rorty

Em primeiro de novembro de 1998 a "The New York Times Magazine" publicou um artigo em tom premonitório intitulado "Nossa Hegemonia Vazia", de autoria do editor da "Foreign Affairs", Fareed Zakaria. Uma das manchetes que encabeçavam o artigo dizia: "Problemas que podem ser resolvidos com bombardeios, enfrentamos sem hesitar. Problemas que não se prestam a esse método, ignoramos". A título de exemplo, Zakaria lembrou aos americanos que seu governo "afirmou ser crucial a restauração da Bósnia como nação única e multiétnica, mas deixou claro que não pretendia pagar o alto preço que seria necessário para se alcançar esse objetivo". O preço teria sido a morte de milhares de soldados americanos.

No momento, os EUA estão se esforçando ao máximo para ignorar o fato de que mais uma vez empreendemos a tarefa de resolver por meio de bombardeios um problema - a limpeza étnica de Kosovo - que só pode ser resolvido com o envio ao local de várias divisões de infantaria, muitos de cujos integrantes teriam mortes sangrentas. No momento em que escrevo, meu governo reflete sobre a possibilidade de negociar um acordo com um ditador sanguinário -um acordo que este nunca vai honrar se imaginar que o fato de honrá-lo atrapalharia a utilização totalmente cínica que faz dos assassinatos e estupros em massa, com vistas a manter-se no poder.

Meu presidente - que é, muito possivelmente, o mais inteligente e bem informado que nós, americanos, elegemos neste século - ou pode tratar Milosevic como estadista com quem espera em breve conseguir chegar a um entendimento melhor, ou pode declarar Milosevic "hostis generis humanis", um intocável com quem nunca mais será possível negociar.

Suponhamos que escolha a primeira opção, utilizando Tchernomirdin como intermediário. Ele poderá impedir a vitória dos nacionalistas de direita nas próximas eleições russas, mas a população de Kosovo nunca mais retornaria para casa e o mundo nunca mais confiaria nos EUA ou na Otan. Suponhamos que escolha a segunda. Nesse caso, terá mantido aberta a promessa de uma força internacional de manutenção da paz, mas correrá o risco de reiniciar a Guerra Fria.

Espero com todas minhas forças que ele opte pelo segundo caminho, apesar do risco implícito. Meu desejo é que tivéssemos declarado Milosevic fora-da-lei depois de Srbrenica e que o bombardeio da Sérvia tivesse sido precedido por intermináveis transmissões em idioma sérvio, nas quais os líderes dos países democráticos, um após o outro, explicassem por que nunca iríamos negociar com um mentiroso sanguinário que explorara descaradamente seu próprio povo, desonrando-o profundamente. Os bombardeios deveriam ter sido vinculados diretamente ao apoio de tropas terrestres da Otan, tropas que teriam sido lançadas na região por pára-quedas, para prevenir os estupros e as expulsões. Deveríamos haver feito dos bombardeios o primeiro episódio numa cruzada de longo prazo, proclamando que os países democráticos do mundo estão e vão permanecer dispostos a sacrificar seus jovens para prevenir um genocídio. Não deveríamos nos ter deixado a pequena margem de manobras da qual Clinton ainda pode, agora, decidir tirar vantagem.

Conversando com um amigo meu, o filósofo Donald Davidson, descobri que, apesar de concordarmos com Zakaria com relação à política externa norte-americana recente, compartilhamos o mesmo sentimento de alívio quando soubemos da decisão tomada pela Otan de dar início aos bombardeios. Como somos aproximadamente da mesma geração e ambos nos recordamos muito bem do final da 2ª Guerra Mundial e da fundação da ONU, ficamos felizes em perceber que, finalmente, os países democráticos talvez estejam dispostos a fazer novamente o que fizeram 60 anos atrás: unir-se numa causa comum para combater um tirano. Ambos nos surpreendemos um pouco com nossa própria belicosidade, mas não conseguimos reprimir nossa alegria diante da idéia de pilotos britânicos, turcos, americanos, italianos e alemães decolarem juntos para salvar inocentes do massacre. Foi a primeira vez que qualquer um de nós pôde achar possível que nossos bisnetos possam viver em um mundo no qual um esforço conjunto desse tipo seja visto como a consequência automática e rotineira de qualquer tentativa de genocídio.

É comum ver velhos como Davidson e eu serem acusados de recomendar a matança de jovens, sem nos abalarmos com a idéia. Deus sabe que ambos sentimos a acusação. Mas isso não basta para nos fazer recuar de nossa convicção de que é preciso cumprir a ameaça feita a Milosevic - que, se não o fizermos, os países democráticos se verão de volta a onde estiveram entre as duas guerras mundiais, conscientes do que precisa ser feito, mas destituídos da coragem de fazê-lo. É verdade, evidentemente, que a intervenção nos Bálcãs, mas não na África ou na Ásia, constitui um indicativo do racismo persistente dos EUA e da Europa. Também é verdade que nosso fracasso deprimente na Bósnia aponta para possibilidade de que mesmo um sucesso em Kosovo possa não ser seguido pela instauração de uma força de manutenção da paz permanente, confiável, fortemente armada e genuinamente internacional. Mas a necessidade de tal força é tão grande que é impossível não nutrir a esperança de que Kosovo seja lembrado como a primeira instância de sua utilização.

Meu palpite é que, se tal força vier a ser criada, será porque a Europa terá encontrado a disposição necessária para tomar suas próprias decisões e parar de pautar-se por Washington. Simplesmente não é possível confiar em meu país para que se faça a coisa certa, mesmo porque sua política internacional se encontra à mercê de um Congresso dominado pelo Partido Republicano. Desde que Lyndon Johnson foi obrigado a nos tirar do Vietnã, nenhum presidente norte-americano se sentiu em condições de pedir à instituição militar norte-americana que se engaje em anos seguidos de duros combates em terra, e nenhuma maioria no Congresso se sentiu em condições de votar a favor de tal engajamento. 

Qualquer tentativa por parte de Clinton de enviar tropas terrestres a Kosovo se chocará com a oposição oportunista e destituída de princípios dos republicanos - homens ignorantes e míopes que, como Milosevic, não têm interesse em nada, exceto em manter-se no poder. O sonho de ver os EUA conduzindo os países democráticos para uma era de cooperação e justiça internacionais deixou de ser plausível. Ainda não está totalmente excluído. Uma vitória arrasadora de Gore ou Bradley e também dos candidatos democratas ao Congresso, no ano 2000, ainda pode causar uma virada na situação. Ainda pode ocorrer um ressurgimento repentino do idealismo que os americanos perderam em consequência da aventura sangrenta que viveram no Vietnã. Mas tanto essa vitória arrasadora quanto tal ressurgimento são extremamente improváveis.

Se D'Alema, Chirac, Blair, Schroeder, Aznar e outros dirigentes europeus fossem capazes e estivessem dispostos a dizer aos cidadãos de seus países que, de agora em diante, a Comunidade Européia iria agir na ex-Iugoslávia, independentemente da Otan - e, portanto, de Washington -, eles poderiam ficar na história como salvadores dos ideais antes defendidos pelos Estados Unidos, aqueles pelos quais muitos americanos morreram neste século - os ideais incorporados na Carta da ONU.

Na 2ª Guerra Mundial e na Guerra Fria meu país prestou grandes serviços ao mundo. Hoje, porém, já não somos um aliado confiável. Estamos confusos demais para fazer de nossa suposta hegemonia mais do que uma farsa vazia. Seria bom, tanto para os americanos quanto para os europeus, se a Europa fizesse algumas das coisas que os EUA não têm mais coragem de fazer.

* Texto publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo, no Caderno "+mais!", em 23 de maio de 1999. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs23059903.htm>. Acesso em 01/02/2015, 20:06.

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