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quarta-feira, 24 de junho de 2015

Dúvidas para os pensadores do próximo milênio*



Richard Rorty

A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em que nada mudasse. Platão, fundador dessa área da cultura a que hoje chamamos "filosofia", supunha que a diferença entre o passado e o futuro seria mínima.

Foi só quando começaram a levar a história e o tempo a sério que os filósofos colocaram suas esperanças quanto ao futuro deste mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro mundo.

A tentativa de levar o tempo a sério começou com Hegel, que formulou detida e explicitamente suas dúvidas quanto à tentativa platônica de escapar ao tempo e mesmo quanto ao esforço de Kant em achar as condições a-históricas de possibilidade de fenômenos temporais.

É claro que o idealismo de Hegel entrava em conflito com o naturalismo de Darwin, mas mesmo assim Hegel e Darwin reforçavam um ao outro. Sua influência conjunta distanciou a filosofia da questão "O que somos?" e levou-a para "O que poderíamos vir a ser?".

Enquanto Platão ou Kant esperavam observar a sociedade e a cultura em que haviam vivido de um ponto de vista exterior, do ponto de vista da verdade imutável, os filósofos dos últimos dois séculos gradualmente abandonaram tais esperanças. Na medida em que levamos o tempo a sério, nós, filósofos, temos que abandonar a prioridade da contemplação sobre a ação.

Temos que concordar com Marx: nossa tarefa é tornar o futuro diferente do passado, e não continuar afirmando que sabemos o que o passado e o futuro têm em comum. Temos que deixar de lado o papel que os filósofos vinham compartilhando com sacerdotes e sábios, em nome de um papel social análogo ao do engenheiro e do advogado. Enquanto sacerdotes e sábios podem decidir sobre suas agendas de trabalho, os filósofos contemporâneos, como seus novos pares, devem procurar saber de que precisam seus clientes.

Uma vez que Platão inventou a filosofia exatamente a fim de escapar aos desejos transitórios e transcender a política, diz-se que Hegel e Darwin teriam "desistido da filosofia" ou "dado fim" a ela. Mas a filosofia simplesmente não pode acabar enquanto houver mudança social e cultural.

Tais mudanças inevitavelmente tornam obsoletas antigas descrições de nós mesmos e de nossa situação, criando assim a necessidade de uma nova linguagem, capaz de formular novas descrições.

Só uma sociedade sem política -isto é, uma sociedade regida por tiranos- poderia prescindir de filósofos. Em tais sociedades sem política, os filósofos não poderiam ser mais que sacerdotes a serviço da religião do Estado. Em sociedades livres, sempre haverá demanda pelos serviços dos filósofos, pois sociedades assim não cessam nunca de mudar, ou seja, de tornar obsoletos antigos vocabulários.

Pensadores como Marx, Weber, Ortega e Dewey tomaram nota das mudanças nas estruturas de poder que a Revolução Industrial ocasionara e advertiram-nos quanto à obsolescência e à insuficiência de nossos vocabulários tradicionais.

Dewey -filósofo que, como Marx, admirava Hegel e Darwin- sugeriu que víssemos a filosofia como fruto de "um conflito entre instituições de tendências incompatíveis": "Aquilo que parece pretensiosamente irreal quando é formulado metafisicamente torna-se intensamente significante quando conectado ao conflito entre crenças e ideais sociais".

Qual é então a agenda de trabalho a que os filósofos e os intelectuais de maneira geral devem atender neste final de século? Quais velhas crenças e tradições estão ameaçadas pelos novos desenvolvimentos culturais e sociais? De que precisam os clientes dos filósofos?

Tal como entendo a situação, o começo do novo século proporá o seguinte problema: os valores do Iluminismo -os valores que se encarnaram com maior ou menor sucesso nas instituições das democracias industriais- poderão sobreviver à derrocada da nação-Estado como unidade socioeconômica, derrocada esta que é uma consequência inevitável da globalização da economia?

Nos dois séculos posteriores à Revolução Francesa, as democracias industrializadas fizeram progressos consideráveis rumo à liberdade e à igualdade com que sonhavam os pensadores iluministas. Mas esse progresso foi obtido isoladamente em cada país, atacando problemas socioeconômicos com políticas localizadas. Não obstante, social-democratas e marxistas sempre pensaram que a nação-Estado deveria e acabaria por se extinguir.

Todos já imaginamos alguma vez uma comunidade cooperativa mundial -o "Parlamento do Homem, a Federação Mundial!" de Tennyson. Mas agora, quando a tecnologia finalmente tornou factível a globalização integral, nenhum de nós é capaz de imaginar como uma tal federação poderia existir, como um governo mundial poderia de algum modo ser democrático.

O problema está em que as atuais desigualdades nos padrões de vida não são compatíveis com uma organização política genuinamente global e internacionalizada, que oferecesse a cidadãos da Zâmbia, da Argentina, da Birmânia ou do Canadá as mesmas oportunidades.

Uma tal política certamente seria apoiada pela maioria da população mundial -os eleitores do Parlamento do Homem. Entretanto, as diferenças hoje vigentes são tidas por naturais pela classe média -a classe cuja existência e prosperidade são essenciais à viabilidade do governo democrático- de todas as democracias industriais.

Poucos membros da classe média argentina seriam bons cidadãos -obedientes e dispostos a apertar os cintos- de uma Federação Mundial dedicada a equalizar os padrões de vida na Argentina, Zâmbia e Paquistão. Poucos membros da classe média canadense nem sequer dariam ouvidos a uma proposta de nivelar as oportunidades socioeconômicas no Canadá, em Portugal, no Usbequistão e na Birmânia.

Mas também já não podemos esperar que as nações mais pobres adiem alguns séculos suas exigências de maior igualdade. Elas podem não querer esperar -e talvez não devam esperar- pela igualdade global por via de uma gradual ascensão a altos padrões de vida, num processo em que não haveria nivelamento ou perda de vantagens por parte dos países ricos.

A diferença entre os 50 países mais pobres e os 12 mais ricos é hoje tão grande quanto a diferença entre os muito pobres e a classe média bem de vida na Espanha ou na Inglaterra dos primórdios da Revolução Industrial.

O grito iluminista por justiça contribuiu para o surgimento, ao longo dos últimos 200 anos, de uma dúzia de países em que não se encontram tais contrastes terríveis entre miséria e afluência.

Mas são esses mesmos países que hoje não têm o menor interesse em rebaixar seus níveis de vida em nome de uma globalização da democracia.

Há boas razões para pensar que a globalização do mercado de trabalho será seguida não pela globalização da democracia, mas sim por uma quase insuportável pressão sobre as instituições democráticas dos países mais ricos.

Quando a justiça entra em conflito com a lealdade, esta última geralmente leva a melhor. Muitos de nós alimentamos e protegemos nossas famílias antes de podermos pensar sobre as necessidades de nossos vizinhos. Muitos de nós estamos muito mais interessados no bem-estar de nossos compatriotas do que na situação das pessoas do outro lado do mundo.

Mas os responsáveis pelas decisões econômicas que estão globalizando o mundo -e dizendo aos trabalhadores dos países industrializados que apertem os cintos a fim de competir com os trabalhadores de Cingapura e de Taiwan- orgulham-se de estarem acima das lealdades nacionais; declaram-se interessados na justiça em escala global. Mas esse discurso soa como uma desculpa pela traição a seus compatriotas, os trabalhadores cujos empregos estão sendo exportados para o Sudeste Asiático.

Não sei como se resolverá esta nova forma de conflito entre fracos e poderosos, isto é, o conflito entre os responsáveis pelas decisões econômicas e aqueles à sua mercê. Mas é óbvio que este conflito cria uma nova e incomensuravelmente maior fonte de tensão entre nossas lealdades particularistas e nosso senso de justiça universalista.

Gostaria que os intelectuais -e em especial os filósofos- pudessem ser de alguma utilidade no tratamento deste conflito entre valores tradicionais. Mas não estou certo de que os filósofos do século 20 tenham muito com que nos ajudar.

O movimento filosófico mais original deste século deriva de Nietzsche, e passa por Heidegger, Foucault e Derrida. Mas este movimento é de pouca valia para pensar problemas sociais. Mesmo Foucault, o que mais se aproxima de ser um pensador social, oferece apenas ressentimento e desconfiança frente a tudo o que lhe pareça uma usurpação de instituições sociais sobre a liberdade individual, mas nunca formula propostas de reforma dessas instituições.

Pensadores como Lyotard e Baudrillard tendem (como Heidegger antes deles) a dar as costas ao Iluminismo. Apesar das construções heróicas de Nietzsche e de seus seguidores, essa tradição tem pouco que se compare ao que Dewey esperava da filosofia: ela é incapaz de oferecer a espécie de redescrição e reconceitualização de nossa situação histórica que Marx e Weber ofereceram a nossos antepassados.

Ademais, a filosofia moral e política de pendor analítico e kantiano, dominante nos países anglófonos, tem tradicionalmente dado as costas Hegel, a Marx e à história. Ao contrário da tradição nietzschiana, ela voltou-se para dentro, para longe das necessidades sociais, dedicando sua atenção às necessidades do indivíduo cultivado, à sua tentativa de transformar sua própria vida numa obra de arte. Seus pronunciamentos têm sido a-históricos, relegando às ciências sociais empíricas as questões relativas à mudança social.

Não há porque esperar ajuda dessa tradição no que toca ao problema justiça versus lealdade. Pois essa filosofia continua a conceber a justiça como valor universal e transcendente, tratando a lealdade como questão empírica, indigna de qualquer papel na deliberação moral.

Mesmo assim, alguns filósofos contemporâneos lograram em grande medida libertar-se de Kant sem voltarem-se para Nietzsche. Penso em Jürgen Habermas na Alemanha, Charles Taylor no Canadá e Michael Walzer nos EUA. Esses pensadores tentaram situar-se na tradição de Hegel, Marx e Weber.

Nenhum deles é ou permanece marxista, mas todos concordam com Dewey quanto à necessidade constante do que Marx fez por nós -despertar-nos para a possível obsolescência dos vocabulários com que levamos a cabo as deliberações morais e políticas ou projetamos nossas visões utópicas.

Tanto quanto sei, os melhores livros recentes a respeito do conflito entre justiça e lealdade são da autoria de Michael Walzer: "Spheres of Justice", de dez anos atrás, e o novíssimo "Thick and Thin". Este último é de especial importância ao argumentar que o universalismo não é intrínseco à moral- ao contrário do que afirma os kantianos.

Na concepção de Walzer, os códigos morais são sempre locais, restritos e "densos". O universalismo "ralo" é, por assim dizer, o creme que -com sorte e em circunstâncias especialmente afortunadas- flutua sobre códigos morais locais e particularistas; ele não é a raiz de onde brotam nossas percepções morais. Walzer está na verdade repondo em circulação a grande objeção de Hegel à ética de Kant: a obrigação universal de agir dignamente frente a todos os homens não deixa lugar às fidelidades particulares que formam nossa identidade moral -nossa fidelidade à nossa cultura, ao nosso país, à nossa tradição histórica.

No próximo século, nossos filhos passarão por conflitos acerbos entre sua lealdade às pessoas e sua obrigação de continuar a trabalhar por uma utópica democracia global. É possível que muitos intelectuais não venham a contribuir para a solução do problema, mas filósofos como Walzer certamente serão mais úteis que muita gente.

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* RORTY, Richard. Mistérios do além. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 dez. 1995. Traduzido por Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/03/mais!/10.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.  




Mistérios do além*


Richard Rorty

Quando jovem, Derrida levou Marx muito a sério, leu-o intensamente e ainda hoje o recorda com afeição e gratidão -exatamente como faz com Shakespeare. Derrida é famoso não só por sua memória fabulosa como também por um sentido de lealdade caloroso e sentimental. Se uma pessoa ou livro alguma vez significaram alguma coisa para ele ou de alguma forma contribuíram para seu percurso individual, não será Derrida quem o esquecerá ou abandonará no meio do caminho.


Sua lealdade à memória de um amigo morto levou-o a escrever um longo e dilacerado ensaio em reação à denúncia contra o passado anti-semita de Paul de Man ("Como o Som de uma Concha Dentro de Outra Concha: a Guerra de Paul de Man"). Sua grande dívida para com os livros de Heidegger moveu-o a escrever repetidamente a seu respeito, com delicadeza e sensibilidade crescentes. Até agora não havia escrito nada sobre Marx, falha que agora mais que supre com este "Espectros de Marx".

O que mais interessa a Derrida é que Marx nos faz pensar na possibilidade da justiça. A "justiça", na obra de Derrida, tem um papel muito especial: ela é o nome para a grande esperança romântica, para o "Grande Indesconstrutível", a única coisa que não seria passível de ironia. A idéia de justiça, a idéia do que Derrida chama "a grande democracia por vir", está sempre a rondar a Europa. E provavelmente é isto o que a Europa tem de melhor, que torna o eurocentrismo ainda atrativo. Se, à maneira de Derrida, tomarmos Marx como o exemplar mais notável do desejo europeu por justiça, é bastante plausível dizer que "será sempre um erro não ler e reler Marx (...) será cada vez mais um erro, uma falta de responsabilidade política e filosófica (...) não há futuro sem Marx, sem a memória e o legado de Marx, em todo caso de um certo Marx, de seu espírito, ou ao menos de um de seus espíritos".


A função de expressões como "um certo Marx" ou "ao menos um de seus espíritos" é a de permitir a Derrida deixar de lado tudo o que não lhe agrada em Marx -tal como nós mesmos esquecemos todos os pontos fracos de nossos antigos amantes, que poderiam empanar a glória de nossos antigos amores. Ao dizer que há muitos Marx, para então descartar a maioria deles, Derrida pode preservar "Marx" como quase-sinônimo de "justiça" e, por essa via, sair-se com a declaração de que "este gesto de fidelidade a um certo espírito do marxismo é uma responsabilidade que recai sobre todos".

Se a causa final de "Espectros de Marx" é a justiça, sua causa material é o uso entrelaçado de palavras como "espírito", "assombração", "fantasma", "espectro" etc. Bem no começo do livro, Derrida escreve: "Se agora me apresto a falar longamente sobre fantasmas, heranças, gerações, gerações de fantasmas, isto é, sobre certos outros que não estão nem presentes nem vivos, seja para nós, em nós ou fora de nós, faço-o em nome da Justiça. Da Justiça onde ela ainda não está, ainda não chegou, onde não está mais, em suma onde ela não está presente e onde nem ela nem a lei jamais serão redutíveis às leis ou aos direitos".

Em outras palavras, a justiça é aquilo que a metafísica da presença está sempre tentando (em vão) identificar a algum conjunto de instituições e princípios. Tal identificação é impossível, porque toda instituição ou princípio produzirá novas e inesperadas formas de injustiça. Toda utopia criará um movimento de protesto social. A justiça é um fantasma que não se aprisiona jamais.

Por mais que admire a intensidade da esperança de Derrida por justiça, não estou certo quanto às razões de sua escolha de Marx como exemplo notável dessa esperança. Não estou certo de que sua lealdade a Marx, sua insistência para que todos nós continuemos a lembrar Marx, seja mais que a recordação de um encontro juvenil significativo, mas acidental.

Não há dúvida de que a história do socialismo europeu, ao longo de mais ou menos 200 anos de história, é o maior exemplo de esperança ativa por justiça. Concordo com Kolakowski quando ele diz que "a crença apocalíptica na consumação da história, na inevitabilidade do socialismo, na sequência natural de 'formações sociais', na ditadura do proletariado, a exaltação da violência, a fé nos efeitos automáticos da nacionalização das indústrias, as fantasias sobre uma sociedade sem conflitos e sem dinheiro -tudo isso não tem nada a ver com a idéia de socialismo democrático. A proposta deste último é a de criar instituições capazes de gradualmente reduzir a subordinação da produção ao lucro, acabar com a miséria, diminuir a desigualdade, remover as barreiras sociais à educação e minimizar a ameaça burocrática ou totalitária às liberdades democráticas".

Suponhamos que, em vez de escrever "será sempre um erro não ler e reler Marx", Derrida tivesse escrito "será sempre um erro deixar de pensar na possibilidade de se construírem instituições capazes de promover as metas do socialismo democrático, assim como será um erro não ter sempre em mente a brutalidade, a desonestidade e a hipocrisia dos que se opõem a esses objetivos". Seria fácil concordar com ele. Ele obteria a mesma concordância se tivesse escrito "socialismo" em vez de "Marx", contanto que tivesse distinguido, como faz Kolakowski, entre socialismo como nacionalização da indústria e socialismo como construção de instituições voltadas para as metas que ele e Kolakowski compartilham. Este último concordaria facilmente com Derrida quanto à necessidade de impedir que o regozijo atual sobre o fim do socialismo no primeiro sentido distraísse-nos do esforço por um socialismo no segundo sentido. Mas, tal como eu próprio, Kolakowski talvez se espantasse com a crença de Derrida em que, "para analisar essas guerras e a lógica desses antagonismos (criados pelo protecionismo, pelo GATT, pela superprodução e a dívida externa etc.), a problemática marxista será ainda por muito tempo indispensável".

Derrida não se esforça muito por apoiar essa última afirmação. Ele alterna entre o Marx pensador da justiça ou da democracia por vir (uma função que John Dewey e Roberto Unger poderiam muito bem desempenhar) e o Marx formulador de uma problemática insubstituível. Mas Derrida não especifica o que há no senso de justiça de Marx para tornar suas formulações de problemas sócio-econômicos tão úteis, assim como não especifica jamais essa utilidade. É verdade que ele lista os dez maiores problemas que ameaçam tornar vãs todas as esperanças européias: desemprego crescente, a exclusão política dos cidadãos pobres, a implacável guerra econômica entre as nações, a globalização do mercado de trabalho, a dívida externa, a indústria de armamentos, a proliferação nuclear, as guerras étnicas, a máfia e os cartéis do tráfico de drogas, a impotência das leis internacionais. Mas sua discussão desses problemas não exibe qualquer traço caracteristicamente marxista.

A ingenuidade não é tão comum nos dias que correm, de modo que é difícil achar alguém que vá se intrigar com a seguinte desconstrução da distinção marxista entre valor de uso e valor de troca: "Marx quer saber quando, em qual momento preciso, em qual instante o fantasma surge no palco (...). Em contraste, estamos sugerindo que muito antes desse 'coup de théâtre', antes de entrar no palco sob a forma de mercadoria, o fantasma já se imiscuíra, ainda que por definição sem aparecer em pessoa, mas já tendo introduzido no valor de uso, na madeira dura e sólida da mesa rija o elemento de repetição (e logo de substituição, conversibilidade, iterabilidade, perda de singularidade, donde a possibilidade do capital) sem o qual não seria sequer possível determinar um uso".

Esse esvaziamento da madeira dura e sólida parecerá familiar aos leitores -pessoas que, como diz Derrida, "conhecem grego antigo e filosofia". Nós que lemos a "Metafísica de Aristóteles" já conhecemos essa "hyle" (o termo grego para "madeira", que Aristóteles usou para designar "matéria"). Percebemos a questão e a piada.

Mas quem precisa de pessoas sofisticadas e poliglotas nestes últimos tempos? Bem, nós certamente precisamos uns dos outros. Pessoas como eu precisam de pessoas como Derrida -gente capaz de ler os livros que eu li e torná-los novos e maravilhosos. Nós precisamos de heróis e exemplos como ele -pessoas que se recriam por meio da releitura e redescrição de tudo, de Parmênides ao cartão postal, e assim ajudam-nos a recriarmo-nos. Mas o socialismo democrático precisa dele ou de mim? Ou será que o tipo de coisa que Derrida faz neste seu livro é útil (usando aqui um termo que me agrada, mas não a Derrida) para fins não apenas privados, mas também públicos?

Essa questão repropõe uma anterior: é realmente um erro não ler e reler Marx? Ou será que é um erro apenas para aqueles que conhecem grego e filosofia? Será que Marx não é mais que um íncubo para as demais pessoas?

Essas são perguntas a que gostaria de responder, mas sou muito ignorante para fazê-lo. Minha queixa principal quanto a "Espectros de Marx" diz respeito à pouca ajuda que o livro me deu em responder a essas questões. Derrida pressupõe a importância de Marx e então torna as coisas fáceis para si mesmo ao se aferrar a "um certo Marx" sem jamais dizer quais outros Marx nós podemos deixar de lado (e por quê).

O tributo mais notável e inesperado que Derrida presta a Marx é o seguinte: "Uma tal desconstrução 'do logocentrismo, da metafísica da presença' teria sido impossível e impensável num ambiente pré-marxista. A meu ver, o desconstrucionismo jamais teve sentido ou interesse se não como uma radicalização do marxismo, quer dizer, como parte da tradição de um certo marxismo, num certo espírito do marxismo".

Reagi com ceticismo a essa passagem. Senti a tentação de dizer: "Oh, veja bem, Derrida, você diz isso de todos os teus avós".

É claro que há uma linha em Marx da qual o antilogocentrismo de Derrida é uma radicalização. Mas eu bem poderia achar linhas semelhantes em Hegel, em Freud, em Platão, em Heidegger ou em Rousseau. Eu bem poderia derivar o antilogocentrismo de qualquer uma dessas linhas, assim como perceberia que o antilogocentrismo não perde nada de sua relevância na ausência de uma ou outra delas (ainda que não de todas). Um comentador de Derrida que isolasse um desses pensadores como a fonte por excelência da tradição que Derrida "impurifica" e radicaliza poderia produzir uma interpretação perfeitamente plausível de sua obra -o mesmo valendo para um outro comentador que, a partir da passagem que citei logo acima, localizasse-o na tradição marxista.

O trecho sobre o desconstrucionismo como continuação do marxismo por outros meios é, suspeito, um eco deliberado à passagem célebre da "Crítica da Razão Dialética", de Sartre, sobre o existencialismo como enclave dentro do marxismo. Parece-me que os protestos de continuidade têm para Derrida a mesma função que a passagem correspondente tinha para Sartre: ambas são uma tentativa desesperada de provar que todo o conhecimento de grego e filosofia e toda a familiaridade com a "hyle" são de fato úteis a um objetivo público vital. Nós, pessoas sofisticadas, somos mesmo úteis ao socialismo democrático, estamos a seu serviço não só como cidadãos, mas por meio de nossas qualificações profissionais.

Há um sentido em que todos nós, antilogocentristas atualizados (derridianos, deweyanos, ungerianos), somos fiéis à "11ª Tese sobre Feuerbach". Não buscamos entender o mundo, ao menos não no sentido aristotélico ou hegeliano de "entendimento", e isso não porque o mundo nos pareça ininteligível, mas sim porque encaramos cada redescrição do mundo como uma ferramenta de mudança individual ou social, não como uma tentativa de capturar os traços intrínsecos do real. Mas agora nossa escolha deve se dar entre mudar o mundo ou mudar a nós mesmos. Se tomamos esta última via, como fizeram Kierkegaard, Nietzsche e Proust, pareceremos egoístas, inanes e decadentes. Envergonhamo-nos quando notamos o esforço excessivo devotado a esse projeto puramente pessoal. Se por acaso tivermos nascido na última geração de intelectuais franceses, provavelmente acabaremos por escrever passagens sobre enclaves no marxismo ou sobre um certo espírito em Marx. Se somos pragmatistas americanos, começaremos por dizer que é importante inculcar nos jovens um espírito antilogocentrista, com vista ao futuro das sociedades democráticas e à realização dos ideais de John Dewey.

Espero sinceramente que as passagens citadas não sejam mostra de uma mera auto-ilusão de Derrida. Elas deveriam ser lidas, no dizer dele próprio, "dans un certain rire et dans un certain pas de danse" (num certo riso e num certo passo de dança). Elas deveriam ser acompanhadas de frequentes memorandos de que o tipo de coisa que nós, filósofos, sabemos e o tipo de mudança nos modos de pensar que nós podemos produzir podem bem vir a ter alguma utilidade social, mas apenas a longo prazo e muito indiretamente. Não há ciência da história, nem qualquer grande descoberta (da parte de Marx ou de alguém mais) do contexto definitivo no qual localizar o desemprego, a máfia, os mercadores da morte, o mercado de trabalho globalizado e tudo o mais.

Contextos produzidos por teorias são ferramentas para a mudança. Teorias que produzem novos contextos devem ser avaliadas por sua eficiência em promover mudanças, não por sua adequação a um objeto (como quereriam os logocentristas). Toda e qualquer ferramenta é substituível tão logo se invente uma outra, menos desajeitada, mais manejável ou portátil. A simples complicação em se tratar de questões contemporâneas com uma problemática marxista é a razão mais convincente para duvidar da necessidade de ler e reler Marx.

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* RORTY, Richard. Mistérios do além. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 dez. 1995. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/06/mais!/17.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.  

Meio milhão de capacetes azuis*



Richard Rorty

Ao visitar Belgrado no ano passado, perguntei aos meus anfitriões, todos eles intelectuais antibelicistas, se os Estados Unidos poderiam fazer alguma coisa para melhorar a situação na Bósnia. Responderam-me que não havia nenhum grande problema geopolítico a ser resolvido, que se tratava de um bando de gangues bem armadas e lideradas por chefetes sanguinários. Cada uma dessas gangues age por si só, tem seus próprios fornecedores de armas baratas e ultramodernas. Formam alianças frágeis entre si, ditadas sempre por necessidades passageiras. Nenhuma visa a algo além de pilhagens e estupros para seus soldados e contas bancárias na Suíça para os chefes. Identidade étnica e ideologia têm pouco lugar, a não ser para fins de recrutamento.


A se acreditar nos meus anfitriões sérvios, não haveria grande necessidade de negociações diplomáticas ou sábias reflexões sobre a história dos Balcãs, mas sim um bom contingente de policiais bem armados: a situação na fronteira bósnia não seria tão diferente assim da que impera em algumas partes de Los Angeles ou Chicago. Muita gente decente na ex-Iugoslávia foi forçada por essas gangues a ferir seus vizinhos, tal como acontece àqueles que, em Chicago, já não esperam proteção da força policial. Esses cidadãos de Chicago pagam impostos para um governo que lhes oferece bem pouco em troca, em boa medida porque o dinheiro dos bairros ricos fora da cidade não contribui em nada para o orçamento municipal. Na Bósnia, as pessoas têm que pagar tributos aos chefetes militares, em boa parte porque o dinheiro das grandes democracias industriais não chega aos cofres das Nações Unidas.

Boa parte do dinheiro que as democracias industriais gastam consigo mesmas vem da produção e comércio de bombas de fragmentação, fósforo branco, pistolas automáticas, mísseis terra-ar e outros itens que tornam a vida mais fácil para os senhores da guerra no Burundi ou na Bósnia. E para que nós, a classe média americana, continuemos a ganhar o dinheiro necessário para o nosso conforto e segurança, é necessário que haja um vasto exército industrial de reserva disposto a aceitar um salário miserável por um trabalho pouco especializado. Gastamos um bom tempo a deplorar os hábitos violentos de povos que, exatamente tal como nós, não podem se apoiar no monopólio estatal da violência. Mas não deixamos de lucrar com as condições que tornam essa violência inevitável.

E entretanto não hesitamos muito em pagar pelos serviços de uma força policial destinada a conter as gangues de um país distante. Ainda não somos tão egoístas a ponto de ficarmos indiferentes ao genocídio em Ruanda e na Bósnia. Não paramos de dizer que deveríamos fazer alguma coisa. Ficamos apavorados com a idéia de compartilhar um pouco de nossa riqueza com as pessoas que nos servem o almoço e varrem o chão de nossos escritórios, mas não nos importamos de usar um pouco do gigantesco orçamento militar americano para salvar alguns lares e vidas estrangeiros.



E, entretanto, sempre que essa possibilidade é mencionada, Washington não faz outra coisa senão enumerar em detalhes as dificuldades das propostas de ação concreta. Nenhum presidente americano está disposto a pôr em risco sua reeleição dando ordens que podem custar vidas americanas -a não ser que essas mortes se dêem no curso de uma rápida e esmagadora vitória. Justamente uma vitória assim não é possível em uma Bandenkrieg, uma guerra contra bandos armados. E são essas as guerras que aguardam muitos países pobres (incluídos aí a Rússia e a China, onde parece haver armas nucleares para quem quiser apossar-se delas).

Há 50 anos, pensávamos que o mundo aprendera algumas lições com o fracasso da Liga das Nações na Etiópia, e que, portanto, as Nações Unidas seriam bem diferentes. Talvez ainda seja tempo. Tornada irrelevante pela Guerra Fria, a ONU tem agora uma nova chance. Suponha-se que, por um instante, deixássemos a idéia (por agora risível) da "liderança mundial americana" e, de modo mais geral, a idéia de que cada democracia industrial deve tomar uma atitude própria frente às novas Bandenkriege. Suponha-se que nossos políticos se reúnam e percebam que estão complicando desnecessariamente suas próprias vidas com a necessidade de esconder suas políticas inertes por detrás de uma retórica moralista. Talvez esses políticos percebessem que valeria a pena conceder à ONU algum poder real, ao menos para evitar repetidos embaraços.



Suponha-se, mais concretamente, que as democracias industriais pusessem metade de suas unidades de combate à disposição de um comando militar nomeado pela ONU. Isso significaria que metade dos marines, dos rangers, dos seals da Marinha e de toda a turminha de Tom Clancy (mais seus equivalentes nas forças armadas do Reino Unido, da França, da Espanha, da Alemanha, da Índia, do Brasil etc) estariam à disposição do Conselho de Segurança para suprimir Bandenkriege.

Essas unidades são formadas por aquele tipo de jovem disposto e até mesmo desejoso de arriscar sua vida em combates violentos e imprevisíveis. Sempre haverá jovens assim, e seria bom usar suas energias para propósitos dessa natureza. Tais pessoas são pouco compreensíveis para nós, intelectuais -mas o inverso também vale, e eles, tal como nós, têm sua utilidade. Em sua maioria, não são sádicos -ainda que alguns o sejam (outra vez, tal como entre nós, intelectuais). Se essas pessoas pudessem ter alguma certeza de que se baterão não para preservar o conforto dos ricos ou o preço baixo do petróleo, mas para salvar pessoas inocentes, possivelmente se alistariam nas unidades de combate de seus países com a intenção explícita de servirem sob as Nações Unidas.


Se algo assim viesse a existir, talvez tivéssemos, em uma ou duas décadas, uma força policial internacional experiente de, digamos, meio milhão de homens e mulheres. Essas pessoas seriam pagas e armadas por suas nações respectivas, mas seu "esprit de corps" seria ligado à sua atuação como capacetes azuis -como homens e mulheres devotados à proteção de inúmeras viúvas, órfãos e refugiados.

Os comandantes dessa força viriam a ter sobre as decisões do Conselho de Segurança a mesma influência que um chefe de polícia honesto e experiente tem sobre as decisões de uma prefeitura. Esses oficiais seriam capazes de reunir sobre uma determinada área os aviões mais modernos, equipados com defesas contra mísseis terra-ar e sistemas de mira de última geração. Poderiam convocar as frotas de todo o mundo para transportar suas forças para qualquer lugar.

A indústria de armamentos (um setor da indústria cujo poder se deduz da raridade com que aparece nos jornais ou nas TVs) teria os maiores lucros. Ela poderia vender seus produtos para os governos que mantêm capacetes azuis, ao passo que só venderiam armas ligeiramente obsoletas ou ligeiramente defeituosas aos senhores da guerra locais. Seria uma maneira de lucrar fazendo o bem.

Seria ótimo dar um fim a esses cínicos mercadores da morte, como seria ótimo fazer algo quanto à indústria de cocaína e heroína, ou quanto àquelas pessoas que, na China e na Índia, estão desviando bens públicos para contas privadas na Suíça. Mas ninguém sabe por onde atacar esses problemas, enquanto que as Bandenkriege e seus horrores parecem ser um problema solúvel.

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* RORTY, Richard. Meio milhão de capacetes azuis. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 jan. 1996. Tradução de Samuel Titan Jr. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/1/07/mais!/22.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.